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Claro que morre, tem de morrer, de outro modo a vida a partir dali não seria possível.
O que fica é uma memória ficcionada, sem contradição, que recolhe os melhores momentos, inventa quando necessário, e assim reconstrói. A ficção da infância, adolescência, permite tudo em nome da sobrevivência. Se através de canções, tanto melhor.
A pop não tem necessariamente de ser fresca, mas lá que convém...
Certas coisas, por muito arriscadas que sejam, não podem deixar de ser ditas. A culpa é repartida por uma série de filmes.
A arte torna-se vida quando atinge a singularidade, quando nos leva para um ponto de tensão máxima, a partir do qual já não podemos distinguir, ainda que por pouco tempo, a emoção real da ficcionada.
(Isto para lá da natural suspensão da descrença, que é simulação, disfarce que parte do lado de cá, e em rigor não tem um lado de lá
(um alfabeto não é um lado, é um mecanismo, para o caso não pressupõe investimento)).
Dessa vertigem já saímos outros, mudados para sempre.
Agora imagine-se a seguinte situação: alguém com poder absoluto, requerimento imprescindível, pede ao mais expressivo dos atores um completo despojamento, o ponto zero do ponto de vista da acção, a total abertura para a totalidade da vastidão, isto é, uma distância infinita (ou, pelo menos, inumerável) para o que a sociedade se habituou a considerar qualidades.
Então, que restaria? Talvez o milagre.
PS – Intervir pela ausência, ontem como hoje, talvez o mais rebelde dos actos.
Há uns anos, não muitos, alguém perguntou a um filósofo de renome, prestes a aposentar-se, o que iria fazer com tanto tempo livre. A resposta, conclusiva: “Vou dedicar-me à contemplação.” Tinha, imagine-se, mais de oitenta anos.
Eis um exercício notável que parece perder-se na noite dos tempos.
O ser humano é diferente porque faz (na variação, como faz) ou porque pensa (no que faz)? Pelo vínculo inalienável entre ambas as possibilidades. Mas isso é só uma parte da conversa. Fazer, mesmo se de modo especial, e pensar, mesmo para lá do que se faz, são a sequência natural da necessidade de sobreviver.
O elemento que distingue não pode, portanto, ser prático. Se o animal persevera, entendemo-lo como inteligente - desse patamar, do leão ao homem vai apenas uma certa, eventualmente grande, quiçá gigantesca distância, só que dentro da mesma linha recta. Simplesmente, um é mais eficaz do que outro dentro de um conjunto de acções que levam à sobrevivência, e logo ao domínio. Chamamos-lhe Natureza.
E a autoconsciência? A autoconsciência gera uma segunda recta, ou melhor, um segmento de recta, pois sabemos que nasceu algures na recta, que, se não curvar, se vai afastando do elemento natural. A condição do sapiens implica, portanto, uma separação, uma quebra nas circunstâncias evolutivas que não se via desde a passagem do organismo unicelular ao multicelular.
A diferença está na qualidade do olhar. Aquele que contempla vê para lá da fisiologia e da biologia. Vê o que os olhos lhe mostram, e depois… Naquele ramo, iluminado daquela forma, toda a história, escrita e por escrever. No outro, que está um pouco mais acima, também. E por isso aqueles que contemplam quem contempla estão perante a interpretação pessoal e intransferível de um passado vivido, uma outra veiculada ao longo de inúmeras gerações e o mistério insondável do porvir.
Um louco e uma criança discorrem sob o céu e a terra, em termos simples pois a palavra também foi concebida para eles. A criança sabe o que quer, só ainda não reconhece a profundidade do sentido. O louco, afinal, sabe tudo o que há para saber, a loucura mostra-se proficiente, é o mensageiro da revelação. O irmão mais novo de uma linhagem de dois.
Depois há a câmara, que gira lentamente sobre eles, aproxima-se num movimento elíptico, que se confunde na mente do espectador ora com o pairar dos anjos, ora com a mecânica (a linguagem) da solenidade que o momento pede, exige, ainda que suavemente e através de olhos bondosos.
Um fenómeno de loucura coletiva, a que chamamos deus, transfigurado pelo cinema em poesia da iluminação. Sorte a nossa, dos racionais, que a religião se organizou em igrejas e pediu a padres e não a cineastas que espalhassem a palavra. Ainda acabávamos a acreditar.
A especificidade (conjunto de conjuntos de interseção não nula) que constitui a AI está na origem de todos os sentimentos, mas há três que prevalecem: amor, medo e desgosto.
As duas primeiras são intuitivas e apresentam-se diretas. É o grande amor da minha vida, claro e inexplicado por igual, e, no entanto, tão óbvio, tão puro nas suas consequências como se todo o Universo tivesse sido criado para a sua consumação. Tenho medo porque tenho mais 36 anos do que ela, isto é, com toda a probabilidade ela vai caminhar nesta Terra durante muitos anos quando o acaso, ou outro, já me tiver(em) expedido em parcelas para a poeira do tempo, devolvido ao estado infinitesimal, onde nem a garantia tenho de sobreviver nela como memória; e como não confio o suficiente em que pessoas e solidariedade façam parte do mesmo sistema métrico... A terceira é algo de muito mais ambíguo. Acredito num sapiens sem sentido na esfera do divino, porém com uma condição ineludível, que implica a necessidade de descobrir; sem isso não existe verdadeiramente, não se afasta do animal que em parte ainda o consome – ser o resultado de um processo evolutivo tem destas coisas, começa-se por muito pouco e ao longo das épocas, medidas em milhões, dezenas, centenas de milhões de anos, esse muito pouco torna-se inevitavelmente em peso que nunca deixamos de carregar. Só que esta condição também implica a perceção de uma luz, aparentemente longínqua e colocada num ponto de vista superior, que nos intimida. Atingi-la pode magoar profundamente, pois quem tenta facilmente percebe que a busca em causa é um mergulho no abismo, isto é, a consciência da sua condição abissal, que desagua na morte do ser. Mas antes houve algo a que chamamos vida. Houve a hipótese do amor. Houve Mozart, Proust e o The Good Son, do Nick Cave, a partir de certa altura. Houve aquela montanha que representa todas as outras, do início ao fim dos tempos. Houve um pôr-do-sol como tantos, mas não para quem o contemplou, e por isso único e irrepetível. Tudo o que cumpre um ser humano para lá da estrita necessidade física. Uma sincera função espiritual testemunha tudo o que há para testemunhar, não apenas o que convém num certo momento. O espírito é o campo aberto a perder de vista paredes meias com o vazio infinito. Dor incomensurável pontilhada por breves instantes de brilho violento. Viver verdadeiramente é não ter medo de a abraçar. Mesmo para uma criança de 12-13 anos, pois tem de começar em algum momento.
(Por exemplo, ver um filme como Blue Velvet com essa idade, o do David Lynch, caso venha a surgir outro, é uma garantia de bom princípio. Seja, 14 anos para não chocar demasiado as consciências.)
E eu sei que muito provavelmente não vai começar.
Está para breve o dia em que uma certa América deixará os nossos sonhos acordados para se tornar num estado para-religioso, a viver uma estranha relação de amor com um ser medíocre, que consegue combinar narcisismo, niilismo e conservadorismo escapando às enormíssimas contradições. É no que dá viver sem lógica, dirão. O líder de culto pós-moderno inspira-se no absoluto vazio de conteúdo... Estranho é que, num mundo que renega alegremente as Humanidades há décadas, ninguém se tenha lembrado disto antes.
Restará, então, a memória, também em canções:
Quem disse que o rock alternativo nunca salvou nada nem ninguém?
No momento em que se celebram os 50 anos de Ziggy Stardust, apetece-me nobilitar os 51 de Honky Dory. A oportunidade de uma vida para usar tão insigne verbo.
Talvez não tenha a consistência narrativa e teatral de Ziggy (algo tão necessário em Bowie), mas, por outro lado, talvez lhe sobre algo que nunca foi habitual no camaleão: um mergulho preciso e sereno na sua intimidade. Isto até que decidiu morrer e levar-nos de visita a esse Abismo, mas isso é outra história. Não é menos cósmico, entenda-se, é (copio de João Lopes) simplesmente devastador.
e, por supuesto,
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