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A honestidade de um filme também se pode medir por pequenas coisas; por exemplo, a forma como se apresenta:
"Eu caminhei com um zombie. Que coisa tão estranha de dizer..."
Caminhei com, andei com, acompanhei um.
E foi mesmo assim. Ela acompanhou um zombie - na expetativa de uma recuperação física e mental impossível.
Para que alguém se torne num zombie, antes é necessário que morra. Dessa morte, uma espécie de vida...na morte.
Mas há um caminho alternativo? Direto e que não passe pelo fim último? Último?
Sim, através da feitiçaria, desde que na origem haja um amor maldito.
Não que seja pecado mortal, pois nenhuma paixão verdadeira o é, por definição. Mesmo as doentes. E principalmente as loucas.
A expressão dessa poesia perdida de amores pode ser simples, e através de olhares estranhos, mas é na exposição da sua convulsão trágica e posterior símbolo - recomenda-se a pintura e a estatuária - que a podemos circunscrever.
Ou a compreensão total ou nada? Vale a tentativa. Neste e em todos os filmes do género - os que importam.
Escusado será dizer que amantes amaldiçoados só se libertam pela morte, e o zombie, mesmo morto, ainda é a memória em vida desse impedimento definitivo.
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Morrer e não morrer...em simultâneo.
Enfim, não há maior tragédia do que a contemplação de um morto-vivo. Ou de um vivo-morto - que os temos de todos os modos e feitios.
O folclore em torno da figura de Kaspar Hauser leva-nos, como convém, por inúmeros caminhos - de maus tratos familiares, passando pela vingança que se abate sobre sangue impuro, ao rapto por extraterrestres e posterior abandono.
Então, não passaria pela cabeça de ninguém mencionar algo como ascendente tecnológico, e logo remeter para certas experiências de corpo e alma.
Supremacia, só pelo acesso ao divino. Alguns queriam compreender, outros eram compelidos a ensinar. No restante, campo aberto a perder de vista.
Ou uma fraude? Do muito pouco ao nada de nada?
O facto histórico:
No dia 26 de maio de 1928, um jovem adolescente apareceu em Nuremberga, tendo como única posse uma carta dirigida ao capitão von Wessenig. O à data comandante do 4° esquadrão do 6° regimento de cavalaria fez o que tinha de fazer: encaminhou o jovem para as autoridades municipais. A (breve) saga terminou 5 anos depois, com o assassinato dr Kaspar, apunhalado por um desconhecido. Ali perto, uma bolsa com uma nota ininteligível. Kaspar sabia quem o tinha feito e onde este se encontrava. Que o próprio autor se denunciaria. Terminava com a assinatura, as iniciais: M. L. O.
Werner Herzog segue de perto os acontecimentos comummente aceites, mas presume de um contexto que lhe serve o propósito. A contemplação abissal de uma vida construída sem referências. O mistério da formação. Procedimento observado in loco.
O Kaspar de Herzog não é louco, não é um pobre de espírito, apesar de parecer ambos. É um sonho vivo. Rebelde em causa, suportado unicamente nos elementos constitutivos. Portanto, um criativo sem vícios. Um dentro de si aberto para um mundo hostil.
Uma singularidade desnudada à nossa frente. Excesso luminoso que provoca lágrimas de espanto: as de Kaspar não nos largam porque são o reflexo das nossas.
Sim, é possível de visualizar - o interior da humanidade escondida (representado por visões tão particulares quanto clarividentes) não é menos enigmático do que a consequência da dobra total do tecido do Cosmos.
Sem quaisquer equipamentos, basta uma predisposição ilimitada.
Um homem contra o mundo.
Primeiro, tornemo-lo espaço circunscrito.
Que os olhos assustadiços do amor proibido se transformem em distância intransponível. Que tudo mantenha o aspeto anterior, mas assente na diferença abissal. Que a paranóia seja a expressão definitiva.
Então está garantida a condição literal.
A invasão perfeita é a assimilação não violenta.
Mas isso é visto no depois de... Na sequência de uma transição.
Dois 'eles' absolutamente idênticos, um EU incapaz de se reconhecer nessa semelhança. É uma questão de naturezas.
E, antes, não há maior violência para um animal que se cumpre na individualidade.
Que se cumpre?
Bom, este é um pesadelo de cinema. A realidade é outra - e a sua expressão escrita vem no condicional. E utiliza todas as simulações.
Crescer, antes do inferno da adolescência, é viver o sonho na sua versão mais pura.
Bom ou mau, não importa, o único que conta é a aventura, e essa não existe sem risco.
Sim, sonhar a infância é experienciar a vertigem da liberdade, e esta não existe sem a noção, ainda imberbe, de viver perigosamente.
Nesses termos, universais e plenos, o super-herói é uma probabilidade de resultado igual 1.
E a Natureza tão simplesmente a mãe que já não temos.
Como se sabe, perdemo-la no dia do nosso nascimento.
Ainda sobre filmes que abraçam o caos, que são determinados pela sua expressão, quer dizer.
Quando o seu instigador se salva no final, não importa o quão dorido, se para a aterradora consequência ou para o final feliz - desde que na direção do sol nascente.
Um filme que se desvincula de qualquer moral - mantendo o decoro, o rigor ético do indivíduo.
Eis um filme que provoca muitas coisas, mas, em resumo, o quê?
Um caso sério de adoração.
Sem reservas - com toda a disponibilidade.
Apetece dizer em voz alta o que ainda não ouvi a ninguém, e tenho procurado com insistência: é uma obra-prima absoluta.
Barroco, em velocidade, não há luz que lhe resista.
Os que gostaram de Fury Road têm aqui o que Mad Max nunca tinha dado: um universo, a consistência de uma...saga.
Os três protagonistas (2 + 1) são tão bons que apetece levá-los para casa.
O que, de resto, fiz. Agora são meus.
A vantagem de chegar em primeiro.
Nos filmes, a infinita possibilidade da observação.
Ao longe, mais perto, no globo ocular, no 'coração das trevas'.
No coração das trevas a visão perde reconhecimento imediato - não a nitidez, pois o conceito deixa de fazer sentido.
Como alguém que vive o pressentimento.
A imagética, quando esta se mantém, já não se representa a si própria, mas apenas o seu símbolo.
A vertigem contida nas suas franjas: representação mais provável dentro de um conjunto indeterminado de hipóteses.
Ângulo de 90 graus em todas as direções, como se sabe, o caminho para a dimensão superior.
Na circunstância, para que o olhar do espectador não se confunda com o do louco é preciso um apoio, o som - não sei se complemento é a melhor expressão, mas é percepcionado desse modo (vale o argumento da navalha de Ockham).
Em The Zone of Interest, pessoas vivem paredes-meias com Auschwitz, e vivem felizes no que a existência tem de simples. Habitam fisicamente um espaço impossível - porque aceitam o valor ilimitado da simulação perfeita? Sim, aceitemo-lo. Se ao Diabo é permitido fazer crer na sua inexistência...
Quanto aos espectadores, não têm essa possibilidade.
Há dois filmes a correr na nossa mente. O som é a manifestação do segundo. Gritos e disparos fora de campo, não por acaso dentro do Campo, onde nunca entraremos. Ou os sons que fazem a passagem da mente absolutamente corrompida para a humanização mais pura (a história da carochinha que o verdugo nazi conta à filha antes de dormir, enquanto lá fora, na noite escura, a rapariguinha esconde maçãs para os prisioneiros).
A evidência de Auschwitz, sem a qual estaríamos perante algo tão devastador quanto a anulação mais dolorosa do ser.
Aqueles nazis sorridentes têm o contraponto moderno nos comícios de Trump.
Hão de ser feitos filmes. Em princípio, sobreviveremos para os ver.
O exato momento da descoberta do amor distingue-se de todos os outros.
É uma singularidade que aparenta estabelecer novas regras, quando simplesmente as anula.
Em rigor, não há antes nem depois - resta o durante. Um contínuo harmonioso para lá do tempo.
Nada o antecipa verdadeiramente, não se constrói pela palavra, não há actos que o robusteçam nem forças que o constituam, ações contrárias podem ter resultados idênticos, não tem uma existência formal pelo que não nos podemos deslocar na sua direção.
É puramente acidental, e tal como não morremos todos num incêndio ou num choque em cadeia, nem todos o encontramos. Alguns de nós vão morrer de velhos sem conhecer o amor.
É tão provável que aconteça ao adúltero como ao fútil. Não regista atividade, não cria precedência, não separa o justo do injusto. Se houvesse a necessidade de uma condição moral, estaria sempre vedado ao fútil.
Os que virem Les Amants com olhos de ver e aceitarem Brahms com ouvidos de ouvir (sem opor qualquer resistência, quer dizer), já não morrem sozinhos - e no fim vão poder dizer que não viveram em vão.
Por que raio funciona melhor na negativa? Isso não sei.
O Homem sem Qualidades é um servo do Tempo.
Serve porque não pode deixar de servir, afinal, por razões biológicas, vive.
E não se serve do Tempo, pois apesar de ter ideias e a sua existência formal o impelir naturalmente para ações, estas não existem em complemento direto com as outras.
Dessa forma, as consequências pertencem a uma entidade abstrata algures no reino da causalidade, movimento, ou melhor, conjunto de movimentos, incompreensível para o próprio. Para gáudio da entidade, diga-se, que goza o momento. Se ambos partilham algo, é a amoralidade.
Que um saiba infinitamente mais do que o outro, bom, sempre foi e sempre será assim.
Que, no homem comum, a ausência se confunda com boas intenções, só aumenta a dimensão trágica.
Tudo como dantes? Antes fosse!
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E agora, é? Sim.
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