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O cinema desponta, tal como a perspectiva, de um ponto de fuga. Se não todo, pelo menos aquele que se estabelece na profundidade de uma ideia espectacular. Que precisa de uma enorme quantidade de luz por contraponto a apenas luz.
Annette é um filme que causa estranheza, pois parece-se com um filme de Leos Carax, mas parece ainda mais (muito mais) uma ópera animada por mil instrumentos, tipo, como dizer, um processo termodinâmico de dimensão estelar, dos Sparks; ou seja, ancora-se nas infinitas possibilidades que caracterizam ambas as forças – espíritos livres que gostam de trabalhar no limite –, sendo que uma delas é trágica e a outra opressivamente luminosa.
Isto, se visto segundo o entendimento do palco na antiguidade clássica, soa a lugar-comum, tal como naquele momento em que Édipo percebe o quanto o seu destino se cumpriu. Ai de mim! Tudo tão claro – Que te veja, luz, pela última vez! E arranca os próprios os olhos; para ver, finalmente, ou para não voltar a ver, no que vai dar ao mesmo. Já o cinema, na sua ânsia realista, que também é uma necessidade, aceitemo-lo, sempre se impediu de tais dislates. Esta é uma cena que o cinema nunca verdadeiramente filmou. Isto é, nunca seriamente filmou. Quando o fez, nas poucas vezes que o fez, ou rejeitou a totalidade trágica, ou, então, afastou-se respeitosamente da solenidade do momento. E assim sendo, pouco sobra. O encosto à metáfora, como se a dizer ‘sei que isto não me pertence’. Alguns filmes fabulosos de um cineasta único – Dom Manoel Supremo CVI, pois claro – assumiram a discrepância e tornaram-na linguagem do cinematógrafo (novilíngua do cinema soa muito mal?).
Então o que faltava, assumindo que faltava algo (sabendo que faltava algo)? A transposição dos limites do ridículo – ou, por outras palavras, a reconfiguração do absurdo – ou ainda, o rearranjo dos extremos. Coisas que exigem coragem. Bem a propósito: extirpar estes olhos que a criação nos ofereceu e reajustar a visão através de uns óculos especiais que nos tornam aptos a receber uma muito maior quantidade de luz, mantendo uma certa harmonia, o sentido de proporção e ampliando o raio nuns diligentes 90 graus em todas as direcções.
É Annette, é o filme que por fim aborda e toma de assalto a tragédia fulgurante, a designação escolhida, instruindo no percurso. Filme que, por exemplo, Dancer In The Dark, de Lars Von Trier, podia ter sido caso tivesse escolhido outro caminho que não a oposição racional de uma mãe que julga que só agindo assim pode salvar o filho. Desse modo, como seria de esperar, perde-se o fulgor e fica apenas a desgraça. A tragédia fulgurante não serve para fazer chorar nem vive de reflexão (cisma é melhor vocábulo e a aproximação possível a Dancer In the Dark). Vive nas proximidades da revelação, e por isso é mais provável que provoque um sorriso do que uma lágrima. Refira-se que Trier, já que o nome surgiu, quase o conseguiu no filme anterior a Dancer In The Dark, o bem-aventurado Breaking The Waves. Lembramo-nos ainda de Apocalypse Now, que seria essa obra, não fosse um filme de guerra, não fosse o Vietname.
Revelação? Sim, é a palavra certa no lugar certo, desde que com um esclarecimento em anexo. O que se descobre não é a perda, mas o caminho inexorável para o que a perda tem de belo, de puro; que já não se pode qualificar como desastre e resiste à prisão de todos os valores morais (atributo destes tempos, que são os do cinema – Dois mil anos depois…). O sonho dos mortais é, obviamente, a imortalidade, por contraponto ao medo da morte. Mas esse é o sonho lógico. Há um outro que subjaz escondido no abismo. Um sonho que, no que à mente compete e lhe é permitido, se confunde com um desafio. Espreitar, arriscar, saltar e, por fim, sorrir.
No cinema, a morte é mais bela do que a vida. Sempre, sempre, sempre… O niilismo, conceito aproximado, apesar de redutor, uma vez que não cinge o segundo sonho, o que subjaz, é perigoso como filosofia, é essência na arte, atinge o seu cume precisamente na 7ª (pois a imagem casa muito bem com a vertigem).
Quando o filme se aproxima do final, o pai de Annette envelhece a olhos vistos, deixa de ver a boneca e pede redenção à menina que está a partir de agora no seu lugar. Não percebe que a boneca é o seu abismo. A chave é não perder o olhar. A frustração, a vontade de infligir dor, o homicídio, provinham, como resistência, do que restava da sua humanidade, não a transpunham. Tragédia que quase encobre a tragédia fulgurante, e nos é devolvida por assim dizer na canção de despedida do filme, onde boneca, artifício e rosto humano transbordam, também por via da auto-referência. É quando o filme se torna pleno.
Annette é uma boneca e Annette é o Cinema!
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