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The Card Counter, 2021

por slade, em 30.11.21

the card counter.jpg

Quem acredita que algo de muito especial aconteceu entre 1967 e 1982, ao longo do eixo Los Angeles – Nova Iorque

(ou seja, uma América que só sai de si própria observando-se nos lugares de referência, na perfeita simulação que é o grande ecrã),

pela mão de algumas das mais excitantes personagens daquele e do pouco que resta do nosso tempo, ajoelha-se perante um filme como The Card Counter.

E se esse período reflete o sagrado possível, então são tanto as forças que nos faltam quanto a necessária genuflexão nos impele.

Falamos de cinema e da New-Hollywood. De um cinema em que o controlo criativo passava pelo realizador, que a especificidade americana (ou a ausência dela) insiste em apelidar de diretor, e agia por fim como aquele que administrava.

O dinheiro necessário provinha de muitas e variadas fontes, mas tendia a ser pouco (para os padrões da produção americana) ou, quando era muito, não raras vezes o próprio se chegava à frente, fazendo jus ao título implícito (que tempos medíocres acabariam por transformar no expediente para o seu fim, pois o cinema não é arte que possa comportar homens arruinados e o público é igualmente cruel, imensamente cruel).

Aqui há tempos, num comentário a um certo teledisco já com largos anos, alguém dizia “até os meus arrepios se arrepiam”. É isso mesmo. Replico com gosto: à medida que os planos de The Card Counter se iam sucedendo, os meus arrepios iam ficando cada vez mais arrepiados.

Conhecia alguns dos rostos, e a esses dava um nome –

Num deles vi Travis Bickle e esfreguei os olhos. Este, Travis de mãos objetivamente sujas… Tão limpas e enganadoras que nos aparecem. E as roupas sempre tão dignas. Travis travestido, portanto.  

Noutro, mais jovem, uma hesitação que se faz da necessidade de vingança, instabilidade, mas acima de tudo que vem de um interior onde víscera e espírito se confundem, não numa amálgama irreconhecível, seguramente não biliar. Mas o quê? A fuga da mãe e a morte do pai são razão mais do que suficiente – e ainda assim há algo que nos escapa.

O jogo feroz que nos fazem jogar tem um protagonista: William Tillich, William Tell. Desvio audaz (porque elíptico) em torno do homem da lenda, homem em quem se pode confiar cegamente, também conhecido por Oscar Isaac. Sussuro em profundidade: Travis travestido. Puro conceito, talvez. Não arte, não cárcere. Tudo menos isso. Utopia para, com tempo, fazer dos homens uma espécie diferente. O sapiens no que tem de completo, de possibilidade de completude, melhor dizendo. Homem dividido ao meio que multiplica por dois. Redentor não redimido, e por essa razão absoluto de Vida.

Na verdade, o destino final do Homem dos três finais idênticos. Três experiências tão necessárias para chegar aqui, onde o esperávamos com o coração nas mãos. São Robert, le Bresson, acendeu a luz, o discípulo favorito seguiu-o dentro do conhecimento possível, quiçá vislumbrando, senão o largo caminho, pelo menos que aqueles pontos dispersos poderiam, uma vez unidos, fazer uma linha. O tempo e as experiências deram-lhe razão. Não há rostos, nem mãos, nem amparos, há o símbolo difuso; dois dedos são a sua representação. Abstração que não salva nem redime, como antes se apontou. Entendimento que abre as portas do possível, e nos permite finalmente entrar. Do redentor não redimido a qualquer um que o queira fazer, desde que…sim, vale o risco, desde que saiba como ver. To bare witness. Testemunhar - O sagrado admissível.

-

Dizem que não passa de um ator a representar admiravelmente, mas, se assim for, então do que é que estamos mesmo a falar? O já citado Travis Bickle tem uma vida própria e um rosto único que, sim, se assemelha bastante ao de um ator muito conhecido. Como Randle Patrick McMurphy, o tal que um índio com mais de dois metros libertou para sempre de um ninho de vespas que a metáfora impôs pelo natural, como cucos. Em rigor, começou com um pugilista falhado, vinte anos antes, um tipo bastante decente chamado Terry Malloy - tal como nos recordou um mui humano Jake la Motta, que de decente tinha pouco.

Alguém que se despe assim de si próprio não é apenas um ator, é uma alma que vive, um espectro de carne e osso, uma transmutação, e também, se olhado de per si, fora do seu contexto coletivo, uma aberração da natureza. Contudo nada nem ninguém nos obriga a esse olhar. Se pressentimos uma determinada ação/reação como limitadora, resta-nos escolher entre risco e segurança – nada de novo.          

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publicado às 12:33


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