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Em tenra idade, havia alguém que com insistência me lembrava do seguinte: cada um vai por onde quer e pode. Estranhos prazeres de uma juventude com vínculo, mas sem sentido. Hoje gosto de pensar que a personalidade vale um pouco mais do que as circunstâncias – O pior é o reflexo no espelho. Assumo: quis muito e até agora pude pouco. Nunca tive a confiança necessária e suficiente para perseguir os meus sonhos, apesar destes, de resto como as minhas opiniões, serem abundantes e não raras vezes grandiosos. Sonhei-me escritor, realizador de filmes, jogador de futebol (mais velho, e mais por Wenders do que por Handke, i.e., levado pela mão por um título e por sugestão de filmes posteriores daquele que foi o meu alemão favorito durante a adolescência, guarda-redes). Nada me parecia mais lógico do que ver-me numa dessas poltronas de saber e resistência física e mental. Sempre preferi o cachimbo aos cigarros, livros e filmes a motos, silêncio a confusão, e música, meus amigos, só escolhida por mim (com uma única exceção); depois, marcar golos sem usar a biqueira da bota ou impedi-los em cima da linha com um voo acrobático revelam um carácter poético, opor-se a que outros tenham a bola nos pés, nem por isso, é apenas trabalho.
Se não tenho por hábito perseguir o que a vida tem para lá do elementar, a dita, símbolo do absoluto que é, nem sempre me deixou ficar mal. Giroscópio perfeito comigo no centro onde outros veriam uma camisa de forças.
Chamei-lhes sonhos, mas seriam verdadeiramente? Um filme e uma banda dizem-me que sim. Sonhos de verdade emanam do desejo, mas têm vida própria, são tão meus quanto de um superlativo cósmico que me transcende. Logo digo-os meus pelo que são, não necessariamente pelo que significam. Constituem-me (no que compreendo e não compreendo). Sonho, logo existo (no todo que sou e no Todo em que também sou). De noite ou de dia não importa…
O filme: Velvet Goldmine (1998), de Todd Haynes; a banda: The Go-Betweens, uma das três da vida airada - Brisbane, Queensland, classe de 1978.
A interseção [já ouvi uma canção dos Go-Betweens e já vi o Velvet Goldmine] deixou de ser um conjunto vazio no dia 14 de junho de 1999. Já tinha idade para ter juízo.
Cálculos rigorosos indicam que já vi esse filme 83 vezes. 4 vezes em sala (as 2 primeiras no mítico King), aluguei-o em VHS 12 vezes entre janeiro e março de 2000, sendo que o vi sempre 2 vezes, vi-o nas 3 vezes que deu na TV, e desde que adquiri uma cópia em DVD em 2003 vejo-o pelo menos 3 vezes por ano. E sobre o filme já disse bastante num contexto mais adequado. Resta-me o óbvio: alguém escreveu sobre Sunrise, obra-prima de Murnau, que não era um filme sobre nenhum dos temas que sugeria (a insinuação era o registo típico do cinema mudo), e que vistos um a um podiam ser muito, quase tudo, mas não tudo, era um filme do sublime, que vertia sobre o espectador sem termo de comparação prévio. Daí a sua beleza intemporal. O sublime, tangente que toca em profundidade sem ser parte integrante, ideia luminosa que foge da definição que lhe querem desesperadamente dar, sendo tão óbvia em certos casos. Lógica sem âncora. A natureza do sonho. O mesmo ocorre em Velvet Goldmine, filme que propõe metas, que as atinge e dele ficam sobretudo as tais tangentes, emanações que o excedem. O plano muito breve em que Curt Wild se volta na escadaria do Metro de Nova Iorque, metamorfoseando a longa cabeleira em rosto, o mais belo e perdido dos semblantes, a mais vulnerável das expressões… passaram 2-3 segundos; que conjuga perfeitamente com um outro, tão parecido, tão diferente, em que o rosto se faz sorriso aberto; e depois com uma frase, lá para o final, que diz tanto: “dizem que não é natural” – e (por uma vez) sobre Tudo.
Estranhamente, cheguei tarde aos Go-Betweens, e cheguei por acaso. Não digo quando por vergonha. Alguém me emprestou um CD com a capa do Tubular Bells II, do Mike Oldfield, como se fosse a última coca-cola no deserto (conceito idiota por definição, e também escolhido a dedo para o efeito); quem mo emprestou era um daqueles tipos tão simpáticos que só aparecem duas-três vezes na nossa vida, pelo que não consegui dizer não. Em casa, a coberto de qualquer indiscrição (i.e., omisso o olhar doce e expectante do meu amigo), abri o CD com altivez, para o poder olhar o tempo necessário antes de finalmente o obsequiar com um merecidíssimo não. Ui!, lá dentro, a letras negras num fundo prateado banal, The Go-Betweens, e por baixo Tallulah, mais ou menos assim:
The
Go-Betweens
TALLULAH
A vida nas coisas – Disco para fora e logo no leitor, onde, vá-se lá saber porquê, foi para a faixa 4: I Just Get Caught Out. 2 minutos e 16 segundos (pausa final incluída) de puro prazer sensorial. Não parecia novo, não era agressivo, a letra não invocava paraísos ganhos nem perdidos, e menos ainda infernos expressivos, se bem que falasse de fogo a certa altura. Mas quando acabava sabia sempre a pouco e tinha de voltar ao início. Cinco, dez vezes. Nunca me tinha sentido assim com uma canção. Terminava a ameaçar um auge que não concretizava, o que começou por me provocar uma pequena dor acima do quadril esquerdo que depois se tornou imensa e dispersa. Essa canção durou um dia inteiro. Como é que alguém me podia fazer uma coisa destas!? Tinha de a ter nos braços e não conseguia. Subitamente a canção fez-se mulher, o que me atirou para o abismo. O tipo era apanhado precisamente no instante em que eu voltava a cair. Vilmente empurrado uma e outra vez. No dia seguinte, o instinto de sobrevivência lá me levou para águas mais tranquilas (mais por mim do que pelas águas, diga-se), Bye Bye Pride e Right Here. E depois a força racional da literatura, The House That Jach Kerouack Built, Spirit Of a Vampyre e The Clarke Sisters (esta, em tese, mas não em mim, a canção mais dorida do álbum). Obviamente, seria tolo da minha parte dizer que já ouvi esta ou aquela canção dos Go-Betweens este ou aquele número de vezes. O sonho, aqui, está ao nível da profecia. De uma Idade por viver.
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