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McCarthy (Original):
Manic Street Preachers:
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Uma questão de energia acumulada.
Saraband foi o último filme dirigido por Ingmar Bergman, quando já contava com a nobilíssima e provecta idade de 86 anos. Homem dados a testamentos artísticos (a seu tempo Lágrimas e Suspiros (1972) e Fanny e Alexander (1983) foram anunciados como as suas despedidas da sétima arte), esperou pelo último momento para nos dilacerar definitivamente, em profundidade (não há filme mais profundo que Saraband) e com requintes de malvadez dignos de um demiurgo que tudo presencia, sem participar (i.e., na perspectiva do humano, que vê mais além e testemunha sem gozo ou agonia – como sabemos, nada incomoda mais do que um deus imune às emoções e às dores de quem o sonha).
Não é um filme sobre a morte (sim e não, sendo que devemos a nós próprios o não), ainda que a sua presença seja inequívoca, por vezes ostensiva. Sintetizando, a morte paira, mas como atmosfera.
Mais: o filme situa-se num limbo que se confunde com a memória afectiva – o uso da primeira pessoa e de fotografias espalhadas sobre a mesa configuram tal pressuposto materialmente, digamos que aqui representam a física do cinema, caso o cinema tenha uma (e claro que tem).
Os movimentos das personagens, notadamente os da protagonista (a brilhante Liv Ullmann, ela própria uma memória que nos dedicámos a cobrir de ternura e distância, em doses semelhantes, ao longo de décadas; viva da silva, mas que fomos velando em segredo pelo menos desde Persona, sempre de modo a que ela não percebesse), são passos objectivos, mas a que Bergman nunca dá um nexo definitivo (e muito menos uma razão). Os reencontros/encontros com o ex-marido (composição ao nível de Erland Josephson), “homem digno de pena”, que nunca se percebe se é cruel ou simplesmente justo, com o filho deste, Henrik, fruto de um casamento anterior, homem ainda mais digno de pena, ou com a filha de Henrik, a jovem-adulta Karin, não são reencontros/encontros destinados à redenção nem à ruptura (nada deles advém que não estivesse já lá). E então para que servem? Talvez para que os vivos recordem os mortos (e se detectam uma potencial contradição, fiquem sabendo que eu também, nós também). Em todo o caso, anda por lá uma fotografia, imagem ubíqua, de alguém que morreu recentemente, e tem um nome: Martha – ao mesmo tempo mãe, esposa e iluminação.
Enfim, tudo isto, de tão díspar e vulgar, são golpes que me disponho (nos dispomos) a receber, quer sejam infligidos pela vida ou pelo cinema, pois a pele é suficientemente espessa e a existência razoavelmente longa. Mas há um para o qual eu (e só eu) não estava preparado. Uma das memórias da protagonista, também mãe, que não é reprodutível em fotografia, ou seja, que não é congelável em fotograma, e que inclusive está para lá da narração (do espaço-tempo como o reconhecemos). A última vez que viu a filha doente na casa de repouso onde esta se encontra e onde para sempre permanecerá – memória que é gesto, continuidade, toque, olhar, olhos fechados, dor infinita... Lágrimas irreparáveis. “A minha menina! A minha menina!”…
O instinto de sobrevivência – sim, pressinto que ainda vivo – leva-me para longe deste filme, que sei que não voltarei a ver. Uma pena, pois é o cume da obra do Velho Mestre. Montanha que não me canso de escalar, mesmo sabendo que a partir de agora o topo me está vedado.
Uma culpa que é de todos, ainda é de alguém?
Não para esta espécie - Humanidade, como alguns lhe chamam, talvez com um nó na garganta... Quem sabe um dia, quando um macaco com menos pelo olhar em frente e vir o Sol na confluência de uma forma geométrica perfeita. Quando deixar de olhar unicamente para cima, quer dizer.
Vale pelo esforço de Maximilian Schell - que, por sua vez, faz valer cada segundo do filme em que aparece no ecrã.
Facilmente se ouve dizer que a fotografia representa uma intenção frustrada, que lhe está vedada a exactidão do olhar humano. Sim, quanto a contrastes e diluições – perante a quebra de uma sombra repentina, o Sol que cai por trás da montanha, o verde vs. o castanho na floresta.
Já quando se espreita a vastidão do Universo, a perspectiva altera-se de modo dramático.
Ai de nós, orgulhosos senhores de um frágil duplo globo. Sim, mecanismo da mais pura relojoaria, sim, sinónimo de uma evolução sublime (humana, estritamente humana, mas que não parece desta humanidade nem deste cosmos)... Gelatina consistente sempre a piscar. Tremor violento, medo ilimitado, curiosidade infinita.
E que sem a fotografia nunca teria conseguido ver.
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