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O ecrã:
É a vida, meus amigos! Quis o destino que o (incrível) ano de 2019 culminasse num aparente contra-senso. Desde já, afirmo que não havia um ano assim desde 1991. Vejamos: Once Upon a Time in Hollywood, Ad Astra, Joker, High Life, Midsommar e The Irishman – a estrear no mesmo ano civil, isto depois de ano após ano em que apenas 1 ou, por milagre, 2 desses em sincronia temporal já justificariam a abertura de uma boa garrafa de vinho… Enfim, anos 70 só houve uns (de que importam todos os outros sem um 1 e um 9 atrás?!). Sendo que o último dos filmes referidos estreou, na maior parte dos países, directamente num ecrã de TV – não…, melhor dizendo, num computador, num tablet, num telemóvel, num relógio de pulso. E foi assim por vontade expressa dos…produtores. Chamam-lhe streaming.
Para alguém da minha geração, conceber uma obra da tal magnitude fora do circuito de salas, unicamente num ecrã que, quando muito, vale pela dimensão de um amplexo, é o mesmo que imaginar o Live Aid no pavilhão de festas da freguesia da Nossa Senhora dos Mártires. É uma obra que se agiganta por definição, que vive e se alimenta do desmedido – do que tem de desmedido na sua composição (a relação com a memória do cinema, tendo um dos seus maiores mestres como cicerone, digamos; guia histórico que, por força, concorre com a extraordinária carreira do dito mestre) e o desmedido do mundo em volta, que enfrenta observando de um ponto óptimo, elevado, estabelecendo uma espécie de relação paritária inequívoca (i.e., em conformidade com a visão Histórica, sim, mas em perfeita harmonia com a visão do Mestre criativo; mais na posição do Demiurgo que do Movie Director, de outro modo, quando a visão é tão forte que História e Narrativa convergem para o único lugar onde ambas sobrevivem sem que uma vampirize a outra: o Sublime).
Para Scorsese, é inevitavelmente um fim de ciclo, o fecho de um dos mais belos e longos instantes de película que se recordam, que vem desde os tempos de Mean Streets e liga directamente a Goodfellas e Casino – Obliquamente, pois como todos os autores, não pode deixar de fazer o mesmo filme (na parte do one for me), também se podem incluir na equação obras como Raging Bull e The Departed, este já parente em segundo grau – E esticando a corda ainda mais, quando à família e ao lugar se junta, no mesmo patamar, em todo o esplendor, o sentido do Eu (e se houve cineasta que o procurou foi Scorsese), temos Taxi Driver, King of Comedy, After Hours, Bringing Out The Dead e Shutter Island. Digamos que o mundo dos gangsters foi sempre uma boa desculpa para começar a conversa.
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As formas no ecrã:
O rosto de Robert de Niro, único, inclassificável, no limite
[consta que um certo produtor, quiçá menos dado a cinefilias do que mandaria a prudência, perante uma das primeiras versões de Mean Streets, ao deparar-se com de Niro no ecrã, terá perguntado em que manicómio o haviam descoberto],
durante muito tempo funcionou como gázua para a câmara impulsiva de Scorsese – Era o atalho, que o espectador depressa percebia como o único caminho viável (a probabilidade 1 do ricochete luminoso que é a hipótese do cinema – sim, é possível). Depois deixaram de fazer filmes juntos, e passaram 24 anos.
Rosto que existe, agora, a dois níveis: o rosto de um homem com 76 anos e o rosto figurado de uma época em que revelava filme após filme o maior actor do mundo, entre 1973, no já mencionado Mean Streets, e 1991, em Cape Fear, o penúltimo grande filme antes da pressentida desistência, logo após, com a sucessão de filmes quase sempre risíveis que se seguiram. A excepção é Casino (Scorsese, é claro), que não foi o fim, como bem sabemos, mas que, à distância, já está dentro do longuíssimo período de pré-reforma que foram os seus últimos e…prolíficos 28 anos. Sucessão de palavras, estas últimas, que não parecem lógicas, lá está. Todavia, quem anda por estes meandros sabe do que estou a falar. Nem Tarantino o despegou da bonomia nos idos de 1997.
Um rosto que nunca foi jovem, mas que, por outro lado, parecia imune à entrada na idade maior, que é a velhice.
Velhice que apesar de tudo veio, algures durante a tal pré-reforma, mas que nunca se lhe adequou; e assim se criou uma enorme e intransponível distância entre os dois rostos – que por essa razão nunca pareceram pertencer à mesma pessoa.
Com o retomar da colaboração entre ambos, nada mais natural, portanto, do que o regresso a esse rosto. Só que esse rosto já não existe. Passou demasiado tempo. Ciente desse facto, Scorsese, brinca com sérias, tenta o impossível, e neste filme de velhos, em que todos já morreram quando o filme começa menos um, Frank/de Niro precisamente, sabe que só pode olhar para trás, para um rosto que já lá não está. Que rosto é esse afinal, que a memória afectiva guardou e a ciência tenta recriar com efeitos digitais? Rosto que a ciência reconstrói nos seus elementos mais luminosos, por cima de um corpo com o qual nem sempre parece combinar. Rosto cintilante como o dos anjos, numa personagem demoníaca que raramente expressa o demónio nele contido. Se queremos o rosto milenar, o rosto da lenda, podemos voltar a ele revendo os filmes, dirão. Mas podemos mesmo garantir que é o mesmo tanto tempo depois? O racional que habita na maior parte de nós não tem dúvidas sobre isso, enfim, é bom que não tenha. Mas o filme, como todos os filmes, vive num universo próprio, há ali um espaço por ocupar que não encontra paralelo no mundo exterior ao da sua convenção. Se os efeitos digitais de rejuvenescimento não são absolutamente perfeitos, tal ocorre apenas pelo grau de impossibilidade latente na ideia da perfeição, e essa sim (a impossibilidade) encontra eco na congregação de esforços e ideias firmes que resultam num qualquer filme; logo ainda mais num filme como The Irishman.
Há qualquer coisa de profundamente tocante naquele rosto estilizado, apenas sonho com a máscara do finalmente é possível (!), enfim, quimera que não meteu medo a um génio como Scorsese; ainda para mais quando desse passo de gigante, assoma uma das melhores interpretações de sempre de Robert de Niro. Tão só o maior actor do mundo de volta, num pequeno ecrã perto de si.
Com os cumprimentos de PTA.
John McEnroe - No Domínio da Perfeição (2018), Julien Faraut -
Por vezes, de um ponto dinâmico que a memória, na sua imprevisibilidade, já esqueceu, vemos surgir a obra-prima. Não nos elementos (porventura) esperados da criatividade primordial, mas na sua recriação, na remistura desses elementos. O sublime reinventado, pois ao contrário do que se diz por aí, não está tudo inventado (a reinvenção não é menos invenção). O cruzamento e o reajuste são, neste sentido, o verdadeiro potencial desta pós-modernidade convencida de si – e na perspectiva do sujeito voluntariamente agrilhoado, não importa o grau de leviandade associado, com alguma razão.
Para o caso, John McEnroe e a final de Roland Garros, em 1984, utilizando imagens capturadas em 16 mm para um filme anterior como ponto de partida. Revivescências de material em bruto a desesperar por um novo olhar. Ou estamos a ser injustos? …
Corra-se o risco.
O ténis na, digamos, incomum qualidade de meio-ambiente – Espaço rectilíneo onde uma alma (por força) contraditória, (de preferência) no limite visível da ruptura, vacila entre conceitos abstractos, mas que, pela impossibilidade da mentira (É DESPORTO, NÃO CINEMA!), só encontram contraponto na comoção do corpo e da acção directa deste sobre a matéria disponível.
Sim, ‘perfeição’ e ‘estratégia’ são palavras que se lhe ajustam, todavia num court de ténis não jogam em simultâneo para os dois jogadores, uma vez que alguém vai perder no fim. E ganhar exclui o total, uma vez que ninguém venceu nem vencerá todos os jogos.
Fica o caminho, no entanto, a solidão, o instinto assassino como puro reflexo (i.e., a disfunção), a perplexidade (a redundar na perspectiva ilusória do controlo) … Percurso em que a comédia se ajusta perfeitamente à tragédia sem a muleta do cinismo. A humanização do melhor jogador do mundo à época com a eficiência da incisão maquinal sem perder de vista a especificidade, algo que se pensava inexequível.
Em suma: eis um filme que faz todo o sentido hoje, tanto quanto o fará, sejamos optimistas, no ano 12.000. O seu timing é o instante do sapiens sapiens.
Era uma vez, num ecrã grande...
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