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Finalmente!
E eis que do coração da indústria, em plena era da infantilização do espectador pela multiplicação de filmes dirigidos a adolescentes que, segundo os demiurgos de tal Ordem, e há quem solicitamente anteponha Nova a Ordem, não esperam complexidade nem desafio
(ironia primeira: fitas – afinal, a palavra certa no lugar certo – que procedem a maior parte das vezes do universo dos…super-heróis – [longe vão os tempos de Indiana Jones e o Templo Perdido e Gremlins, os filmes que estiveram na origem da criação do PG-13 – definitivamente, não estamos a falar do mesmo]),
surge um filme que (deveria) impossibilita(r) a simplificação.
É inevitável começar assim, pois esta é a virtude que antecede todas as outras em Joker. Antes de ser um filme extraordinário, é um jogo de espelhos que (ironia segunda:) se vale de uma ideia de resistência unipessoal que entra filme adentro de pantufas, travestindo-se de uma outra bem mais apelativa, a sublevação colectiva.
Mas será mesmo assim?
Supondo que sim:
Resistência que só pode ser vista como justa, a do pobre palhaço pobre que ousa não deixar cair os seus sonhos perante a brutal agressão, e termina em pesadelo. O reconhecimento de uma personalidade pela violência homicida, não como forma de validação, mas no cumprimento dos cânones da tragédia clássica (tal como a Édipo, o Rei, a Arthur resta-lhe cumprir a estranha profecia que pesa sobre os seus ombros – o resto é o inevitável conjunto de múltiplas coincidências que, pela dor que adicionam em tão curto espaço de tempo (tempo do espectador / leitor, claro está), amplificam as consequências da tragédia, dando-lhe pigmentação; neste como noutros casos, o vermelho do sangue). Narração com o seu quê de cautionary tale, sim, mas sem a rigidez da precisão moral.
Sublevação que funciona a dois níveis, um literal, outro simbólico; a revolta da classe oprimida por um lado, mas também a de um cinema contra outro que apenas simula, de um cinema que aspira à autoria, por oposição a outro que representa a uniformidade (os filmes de super-heróis conseguem a extravagância de agradar a conservadores e liberais de igual modo), num tempo difícil para tais ambiguidades. A revolta dos pobres e oprimidos rapidamente se constrói como farsa, e por aí se perde. Mais que não seja, porque não há intenção. E convenhamos que salvar aquelas classes desfavorecidas, tal como nos são mostradas, provoca arrepios na espinha. É, portanto, na sublevação pela metáfora que Joker se eleva, assumindo assim a diferença perante todos os que o precederam dentro do universo super.
Evidentemente, um tal conjunto de ideias, e porque expostas em simultâneo, não indica um caminho. Antes a sua ausência, digamos. O que pode magoar bem mais do que uma sucessão de pancadas. (Suspiro!) Nem todos são espectadores ideais, livres, … nunca foram, nunca fomos. Na verdade, a maior parte já nem sequer se concebe como tal – e hoje era tão fácil. Há um orgulho que se dissemina pelo excesso de pertença e pela não pertença por igual, que cheira e sabe mal, é pegajoso, para se reencontrar, enquanto regularidade percepcionada, numa televisão ou numa rede social perto de si… Joker tem o mérito de não ceder a nenhuma das ditas certezas em causa, nem sequer à mais óbvia.
Por exemplo:
|Quando Arthur confessa a Murray que foi ele que cometeu os homicídios no Metro, dadas as circunstâncias, pois estão num talk show onde se esperam piadas, Murray, apesar de visivelmente incomodado (ou expectante, pois o cheiro a sangue também é uma oportunidade em televisão), pergunta-lhe pela punch line. Caso houvesse uma, estava garantida a validação de todo um sistema por muito inapropriada que fosse a piada, ou o homicídio. Arthur encolhe os ombros, e diz com voz doce, “Não há nenhuma!”.
Não há piada, houve homicídio. Que é errado, por definição. Todos concordamos. Mas sem a garantia da norma, que certifica, não há rede de segurança. A ...realidade, pelos olhos de quem a habita, concebe a piada, e concebe o homicídio desde que com a caução da necessidade colectiva, que o justifica ou que o abomina - contudo, por ser percepção tanto quanto facto, não sabe o que fazer perante o (que vê como) absurdo trágico. |
Se Joker é subversivo, não é pela sua moral invertida, mas (ironia terceira - e tanto que fica por dizer - :) pela ausência de punch line. A necessidade do Eu, talvez grandiosa, porventura trágica, não cabe no plano do Todo quando este já esqueceu que é uma soma de partes idênticas. O que pode muito bem ser a grande tragédia, e não é moral de história nenhuma.
Por isso é tão desconcertante, por belo e abstraído e egotista e energético e espectacular e decadente, o único momento de pura catarse em todo o filme: a dança nas escadarias ao som de Rock And Roll (Part 2), de Gary Glitter. (Enfim, uma música de um pedófilo condenado, como elemento de ablução de um assassino em série em plena descoberta do novo Eu, que por acaso foi abusado em criança, e também em adulto, e que a populaça toma por um herói libertador, quando é, na sua forma (que deixa para trás a consequência), uma forma arrevesada e pomposa, porém de grande submissão aos sonhos de criança (i.e., inocente), de afirmação pessoal – Terá Todd Phillips pensado em tudo isto? Não importa, pensamos nós por ele.)
Claro que é, como, de resto, todos os fantasmas e, se e quando possível (i.e., cobertos por lençois ou no uso de outros disfarces), os respectivos reflexos.
Assusta(m) - E ainda bem!
Afinal, não foi você que pediu um super-herói?
(To be continued) ...
Agora uma canção para apaziguar:
"Come on Mary, Mary or you, John
To which religion do you belong?
You and your lover, you and your friend
Peace in the end
What about me, me and my kind
If we're unknown, are we left behind?
We have our lovers, too, and our friend
Hope in the end
You may think our lives are forever
I think you could be wrong
But if we were together, together
I know we could get on
Go ask your neighbours to come and sing songs
You know they've wanted to all along
I've seen them smile for their friends
All in the end
You may think our lives are forever
I think you could be wrong
But if we were together, together
I know we could get on
I've seen them stand at the top of the hill
And none of them coming down
But who will be the last one to kill?
And who will be the clown?
Come on Mary, Mary or you, John
To which religion do you belong?
You are our lovers, you are our friends
Peace in the end"
Para as estrelas?
Perante Ad Astra, o mais recente filme de James Gray, corre-se um sério risco: permitir que a voluptuosidade do olhar interior que o filme convoca se deixe abater pelo aparente paradoxo científico. Anos de vício científico e sonhos por cumprir…
Contudo, isto é cinema, simplesmente cinema, o que abarca a vida, a ciência e tudo o que remanesce, pelo que um tal tópico, pagas as dívidas mais prementes, só pode servir para início de conversa.
O filme é escorregadio, portanto. Pelo menos no primeiro visionamento – e filme que se preze precisa no mínimo de três. Mas, bem vistas as coisas, adopta uma orientação reconhecível; se se quiser resumir, digamos que de acordo com as expectativas desde as primeiras imagens, assente nas necessidades primordiais tal como nós, juízes em causa própria, as supomos. Um sopro, a que se segue a visão dantesca do impensável, e dali, uma vez que o nosso herói sobrevive, para o desconhecido (que, por ser Espaço, reverte no Infinito). Desaba no sentido da gravidade tão rápida e intensamente quanto o defrontar / encarar permite, para dela (prontamente) se libertar para sempre (seja como força – i.e., propriedade científica -, seja como símbolo).
Assume o salto no abismo como base de trabalho, prevendo que, de um salto, ou se cai rapidamente ou não se chega a cair. Roy, o ponto concentracionário da obra, de onde tudo emana, num filme de Sci-Fi ajustado ao grande-plano, começa por cair a grande velocidade na Terra natal, para depois cair lentamente numa cratera lunar. Em Marte, a paragem seguinte, não cai, antes ondula e serpenteia num lago encastrado no subsolo. Até que no términus da viagem, em Neptuno, perante o abismo dos abismos que lhe foi dado a contemplar, começa por flutuar no vácuo, e seguidamente é-lhe concedido voar. Suficientemente longe do Sol, onde o que queima não são as chamas de um qualquer inferno inventado para doer no corpo, mas as amarras de uma prisão que não entendia e passa a aceitar, assim se libertando – para, por um breve instante, voar.
Aceitar um mundo sem Deus, em última instância é disso que se trata, implica aceitar um mundo sem nexo para além do nexo de causalidade. Viver nesse mundo num estado de sanidade implica, por sua vez, aceitação. A espiritualidade não é vácua nem é absoluta, é a essência de um comportamento regrado, em que se aceitam barreiras e se vive o desencanto. Por outras palavras, não se omite o passado nem se sonha o futuro radioso, vive-se simplesmente – a sós com uma imagem corpo-alma que é nossa e só nossa e sob escolhas, na aparência, restringidas, mas também outras por determinar. Muda-se o que está para vir, não esquecendo o que passou. Todos os corações das trevas têm os seus horrores, mas alguém vai sobreviver, eventualmente, pelo que também têm as suas aprendizagens.
No fundo, tudo se resume à forma como se enfrenta a inevitável solidão.
"Candy, it's been really nice, but I've got to go
'Cause I can't be the part of your life you don't wanna know
...and I can't keep lying all the time
And I know you'll find a better man
They're all too easy to find
And I'll just go away somewhere and slowly lose my mind
Candy, they called you a baby, they called you a whore
And I can't see the light at the end for you anymore
...and I can't keep lying all the time
And I know you'll find a better man
They're all too easy to find
And I'll just go away somewhere and slowly lose my mind
Candy, I can't be the man they want me to be
Maybe it was only with you that I could be me
...and I can't keep lying all the time
And I know you'll find a better man
They're all too easy to find
And I'll just go away somewhere and slowly lose my mind"
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"I will not sing your ugly song
I won't put on your ugly play
I cannot join your ugly priesthood
And if I die I won't come home
Railroad boy of mine...
I bought you crows and candelabra
And I went moth-eating with you
I held you down when you had seizures
And read to you at bedtime
Railroad boy of mine...
We went to see a beaver dam
We went to see a coral reef
But life is more than going to see things
And that's too bad
Railroad boy of mine
Railroad boy of mine..."
-
Também nesses extremos a pop, feita canção, pode ser perfeita.
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