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Repetição, ‘acto de repetir’. Houve uma época em que a habilidade para concretizar efeitos de repetição era a norma pela qual se definia o autor de cinema. Prerrogativa do realizador, que fique claro. John Ford fazia sempre o mesmo filme, o que o próprio não desmentia, e ninguém lhe poupava encómios, Alfred Hitchcock só muito raramente alterava o método com o qual captava a nossa atenção. John Carpenter, com bastante sucesso crítico, ou Brian de Palma, este com pouco ou nenhum, também utilizavam sempre a mesma metodologia (Brian de Palma ainda anda por aí, John Carpenter diz que não). E que dizer de David Lynch ou Stanley Kubrick (que mudava de género de filme para filme, mantendo tudo o resto) ou Quentin Tarantino. Não, não é uma interrogação.
Os tempos mudam, todavia algumas almas notavelmente insistem… E este é o maior elogio que se pode fazer a Nic Pizzolatto, o criador da série antológica True Detective, que já vai na 3ª temporada.
O mínimo que se pode dizer de True Detective é que começou maravilhosamente. A 1ª temporada é um daqueles extravagantes pontos de inflexão, onde do topo se deriva sem que isso implique descer. Coisas da física dos corpos em jornada pelo Cosmos sem estrelas ou planetas por perto. E também da Arte. A ele, Pizzolatto, devemos uma das personagens mais carismáticas que qualquer um (desde que com memória afectiva pela ficção) recordará para sempre. Rustin Cohle, o pessimista ateu, interpretado Matthew McConaughey. Devemos-lhe também uma forma de contar histórias, que não sendo nova, através de linhas temporais que se interligam, contém em si um espírito ancorado na perda como fim absoluto que (that’s the catch) não permite um fim definitivo, a vida possível em modo de navegação à vista que não pode deixar de ser vivida, por assim dizer. Vida exposta de uma forma opressiva, método feito de planos tendencialmente longos, evolução narrativa lenta e quebras de tensão visual em contraste com a robustez e secura de um diálogo sincopado (do qual, por exemplo, uma boa parte das vezes se excluem artigos e elementos de ligação). E aí o termo novidade, uma vez sublimado o método na estrutura narrativa, já pode (e deve) ser utilizado.
Na 2ª temporada as coisas já não correram tão bem. Pizzolatto não aliviou a panela de pressão, ainda e sempre à beira de uma explosão que não ocorre, mas deixou para trás uma parte do método. Enfim, não quis fazer igual, e acabou a empurrar com a barriga. O que, mesmo com o risco de se cometer uma injustiça, dá nota de animal assustado. Todos nos lembramos de Kid A, o álbum seguinte a OK Computer, dos Radiohead. E agora? Não sei! Mas alguma coisa tem de se fazer… Bom, pode ser que ninguém repare. Mas claro que acabamos por notar, afinal, estamos todos a olhar para lá. E com um máximo de atenção. Pizzolatto reconheceu o erro, como se pode comprovar nas poucas entrevistas que deu entretanto.
A 3ª temporada foi, desde logo, o regresso a casa por que tanto ansiávamos. Tal como, socorrendo-nos de John Carpenter, Escape From L.A. não é uma mera repetição de Escape From New York, mas o seu ilustre e inevitável complemento, também esta 3ª temporada é a necessária redundância que dá sentido ao todo. Não porque repita, mas porque permite a prodigalidade, complementando assim o que já entrevíramos na 1ª temporada. Os casos nunca se resolvem na sua totalidade, mesmo que multipliquemos por dois o tempo para os resolver. Mesmo que se jogue para além do tempo, no limite da memória, onde o eu se desvanece e a resolução já nem sequer importa. Certos muros, tal como certas classes dominantes, nunca serão derrubados.
Pizzolatto gosta de piscar o olho ao melodrama, mas não é, definitivamente, um coração mole. E não me venham com o final da 1ª temporada, que é tudo menos a vitória da esperança. A luz está a ganhar, sim, sim, Rusty, engana-te que eu também finjo que acredito. Bem sei que já ouviste falar nessa tal de energia escura, a tal que, mais tarde ou mais cedo, vai acabar por atirar a gravidade para os confins do esquecimento, onde, segundo consta, tudo é negro.
Sim, tem de começar assim:
Alguém que admiro – e isto basta: é um devoto de Madonna, provavelmente a ligação directa à adolescência que o faz lidar melhor com o seu envelhecimento (mas que sei eu?) –, fez-me reviver esse lugar de estranhas afectividades que era o liceu de Twin Peaks, e que no meu mundo de sonhos também frequentei entre Outubro de 1990 e Maio de 1991, sabendo agora, tantos anos depois, que vai ser demolido.
Antes, passei, em modo delirante, pelo episódio-piloto da série, dirigido pelo meu então pai-espiritual, David Lynch (o autor do meu filme favorito, Blue Velvet).
Nunca suportei o Bobby, e, obviamente, James era o meu favorito. Quanto às raparigas, para ser sincero, não passavam de quadros belos e distantes, pelo que não me deixei arrebatar por nenhuma durante essa breve estadia. O medo é o melhor conselheiro das paixões adolescentes, e elas eram assustadoras. Mesmo a Donna.
Em bom rigor, lá como cá, amigos não tinha.
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A face morta de Laura Palmer…
O rosto de Laura Palmer. Anilado, sem vertigem, mas ainda belo. O episódio-piloto. O tempo que Lynch deixa correr desde o instante dessa terrível descoberta até à explosão de emoções (intersecção dos conjuntos: família – comunidade) é um dos maiores prodígios da história da ficção audiovisual.
Veja-se o dois em um, quando os pais de Laura descobrem em simultâneo sobre a sua morte. Leland, o pai está numa reunião de negócios. A certo momento recebe um telefonema de Sarah, a mãe. Não sabe onde a filha se encontra e da sua voz sobressai, como esgar (reacção típica de Grace Zabriskie, actriz disfuncional, habitué nos filmes de Lynch), o pânico. Ao fundo vemos chegar o Sheriff, que sabe o que nós sabemos. Leland diz à mulher para não se preocupar, até que vê o Sheriff. Um instante de silêncio. Silêncio atroz. Leland pergunta: “It’s about Laura?”, com a mulher ainda no outro lado da linha. O Sheriff confirma. Leland grita o nome da filha… No outro lado da linha, um choro continuo, não menos esgar. A câmara percorre o fio do telefone num plano-sequência que exclui rostos. Sobram sons. Em nenhum momento foi pronunciada a palavra morte ou anunciado um assassinato.
Ou os prenúncios, como os que Donna e James tiveram na sala de aula, onde Laura não estava e devia estar.
Ao todo, entre a descoberta inicial e a notícia, são 25-30 minutos de perfeição narrativa e um tratado de como se devem expor emoções em ecrã, a desaguar no plano mágico sobre a fotografia de Laura (afinal, a heroína do liceu) ao som das harmonias inquietantes de Angelo Badalamenti.
Para além disso, havia um sabor a novidade. Nunca se tinha visto sequer parecido em televisão.
O episódio-piloto tem cerca de 90 minutos. Os dois terços seguintes são a segunda parte do assombro-Lynch. Do regular para o absoluto extravagante, vestindo a pele do lobo mau, como já fizera em Blue Velvet. Ou seja, do mistério policial – quem matou Laura Palmer? –, mistério da narrativa, para o mistério expressionista do ser perplexo e só perante a indeterminação da existência (para qualquer outro diríamos que seria sobre o Bem e o Mal, porém, viemos a saber mais tarde, a Lynch apenas interessa descobrir as origens do Mal), o enigma maior a que se pode chamar Mistério, em maiúscula, como os crentes fazem perante a figuração do divino. Em Lynch, o inflamável, o incontrolável, o irresolúvel e o imaterializável…
Ah, e quem matou Laura Palmer foi, como não podia deixar de ser, o pai, perdão, o Pai.
- Jacob Aue Sobol:
"To me the camera is a tool to find and depict love to a point that it became an obsession. I photographed young couples in love across the planet to remind us that we are all the same, what we have in common is greater than what separates us. That young couples in love from Beijing share the same love as young couples from Moscow, Paris or New York. And, after this obsessive search for love came to an end, I found Martin and Pernille in my own neighbourhood in Copenhagen."
- Ernest Cole, Forbidden Love, Harlem, New York (1969):
- Emin Ozmen:
"Water is often present in my photos, like an unconscious obsession. Perhaps because it is omnipresent in my country, bordered by the Mediterranean Sea, the Black Sea, the Aegean Sea, the Marmara Sea, crossed by the Tigris and Euphrates and punctuated by many lakes. Much of the village of Halfeti was submerged in the 1990s when the Birecik Dam was built and today it is only accessible by boat. In this photo, children are playing in the water while standing on the roof of the village’s sunken mosque."
Sabemos que o cinema está habituado a viver em crise. Por exemplo, nenhuma outra arte foi tantas vezes condenada à morte. Sempre na borda do abismo. E quem o apregoava eram os melhores de entre os seus – não raras vezes com estrépito, depois sorriso intelectivo que se lia no triângulo entre os cantos das bocas anormalmente grandes e o ponto onde o cimo do nariz encontra o vértice do ângulo obtuso gerado pelas sobrancelhas do pensador-criativo. Por conseguinte, aprendeu a caminhar nesse contexto, e nessas circunstâncias se fez grande e nobre. E, claro, para adultos. Até que…
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O Tempo, esse que nos permite crescer e, em simultâneo, nos força a contemplar o instante da morte nas mortes dos outros, faz o que pode, e isso quer dizer que nunca fará o suficiente.
O cinema, como é óbvio, enquanto conjunto ilimitado contido num conjunto ainda maior, muito maior, apenas pode aspirar a ser ténue reflexo. Ou seja, a espelhar de modo limitado o Tempo mediante circunstâncias que o transcendem e que, mesmo perante o detalhe da Arte (letra maiúscula), pouco ou nada derivam de outros propósitos que a tornam possível – Sejamos claros, não existe cinema sem a noção de orçamento; não se trata somente de inspiração, ou caneta e papel, pedra para esculpir, tela para pintar, trata-se de reunir uma equipa diligente que nunca será pequena, maquinaria e condições propícias, interiores ou exteriores, tudo sob rígido controlo criativo e preso por detalhes que obrigam a uma enorme precisão. Não há arte mais exposta ao erro do que o cinema, não há arte que torne o erro mais inadmissível do que o cinema. Albert Camus disse certa vez sobre os livros de Tolstoi, ‘a toda a hora vemos personagens que se levantam sem antes se terem sentado’. Na literatura, isto não impede a obra-prima, no cinema tal seria intolerável.
E o que fez o Tempo nos primeiros 120 anos do cinematógrafo? Esperou 80 e mudou a face do espectador típico – e este, nas últimas quatro décadas, passou paulatinamente de adulto a pré-adolescente… A queda em profundidade, sorvedouro de energia criativa pior que o maelstrom do conto de Poe, pois em vez de transformar os pré-adolescentes em adultos precoces, antes infantilizou todo um discurso, afastando os adultos do processo. 40 anos depois já não importa o volume da massa de carne ou a idade do espectador, deixou de fazer sentido falar do que distingue este daquele.
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Esclarecido o anterior (não?!), aceitemos o óbvio: o género cuja qualidade decaiu de forma mais acentuada ao longo desses anos foi o Horror (nos meus tempos de aspirante a jovem turco dizia-se Terror), pois não há género mais suscetível à tolice e à repetição.
Por isso – ainda que com 5 anos de atraso, mea culpa – saúdo um filme como It Follows, de David Robert Mitchell.
It Follows tem uma premissa simples, mas não é mais do que um desvio para um universo paralelo. Alguém dorme com alguém, e a partir desse momento o primeiro alguém deixa de ser perseguido por uma entidade sobrenatural que toma múltiplas formas humanas, passando essa condição para o segundo. Se o segundo morrer, volta para o primeiro. É o primeiro vírus que permite reversão e cuja consequência é única e abertamente sobrenatural na história do cinema? Sim, que recorde. O sexo é a única forma de passar o vírus ao próximo incauto sedento. Quanto à entidade, não anda depressa, não corre, não viaja de carro ou avião, simplesmente caminha em passo normal, demorando o tempo necessário. Monstro indefinível, não hesita e não desiste. É monstro dos Monstros.
Sabemos que a vertigem é assassina, mas não nos é dada qualquer razão para tal. A perturbação é o acontecimento. David Mitchell observou os Mestres com atenção e percebeu o que havia a perceber. Se em The Birds, de Hitchcock, o ataque entre entes que não se reconhecem em termos de comunicação não deixa pistas, um vírus também não explica porquê, muito menos um vírus que ativa mecanismos sobrenaturais. Vemos o que acontece ao perseguido quando é apanhado pela entidade uma única vez – uma forma humana destroça um dos jovens numa simbiose elétrica e abertamente sexual, e tem o aspeto da sua mãe. Uma outra personagem, a protagonista, a dado momento é perseguida pelo seu pai. Ai de nós se o tentarmos explicar.
Estamos perante pós-adolescentes entregues a si próprios. Os pais não aparecem, a não ser, como vimos, como reproduções sinistras. O que se esconde atrás do espelho? Um paraíso latente onde jovens podem ser e fazer o que lhes apetece? Não! Nada disso! Antes a suspensão infernal do crescimento dos jovens na sociedade moderna, com o cinema como espelho. Aos jovens não é permitido crescer livres, pois, como ao cinema, não lhes é permitido errar. A supressão do desejo, do contacto, no fundo o que aqui se lhes pede, é tudo o que se queira, mas de modo nenhum a salvação.
Até que decidem que já chega – ripostam, decidem atirar a matar, vá-se lá saber contra quê, e, mais do que tudo, dois deles fazem amor, inequivocamente amor, e seguem em frente sem olhar para trás…
A sequência final, depois de um campo / contracampo que faz lembrar outros tempos, num outro universo possível, é a representação de um absoluto que o cinema poucas vezes tentou e só raramente, muito raramente nos deu
[Assim de repente, talvez o final de The Straight Story, de David Lynch, e / ou a cena da (e na) prisão de Jake La Motta em Raging Bull, de Martin Scorsese; no primeiro, o silêncio, no segundo, uivos e murros e gemidos; formulações que se colam à memória para sempre. Em It Follows, a consciência de si num simples olhar reciproco; enfim, a venerabilidade é o cume].
Digno e trágico por igual. Os dois jovens a caminhar de mãos dadas, expectantes, em silêncio, como se sugados para um lugar que é também um olhar interior que ambos partilham, como se dividissem um sonho a meias (sonho de amor, sonho de liberdade). Talvez ainda perseguidos pelo inominável - Já não importa. Estão prontos. Afinal que outra coisa significa ser livre. Finalmente livre.
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A densa atmosfera do filme teve como referência o trabalho fotográfico de Gregory Crewdson. Eis uma amostra da sua notável e perturbante fantasmagoria:
A honestidade dos corpos, apesar de tudo.
Um corpo nu não é ficção - e, mesmo falando de cinema, nunca, nunca, nunca será simulação enquanto souber reter a inocência para quem vai olhar, ou seja, enquanto não cair na tentação da transformação excessiva. Dito de outro modo, enquanto quem o filma souber evitar a uniformidade.
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