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The Other Side of the Wind é, tão-só, tão simplesmente, um dos dois-três-quatro filmes mais importantes da história do cinema. Não há outra forma de começar. E registe-se a tentativa.

Orson Welles terminou as atribuladas filmagens de The Other Side of the Wind em 1976 (haviam começado em 1970), e nele deixou de trabalhar definitivamente no início dos anos 80, com pouco mais de 40 minutos editados. Ficou pronto em 2018, terminado por outros (com Peter Bogdanovich, também actor no filme, à cabeça).

Mais do mesmo – dirão os que foram educados, por via de regra, pelo cinema. Poucos homens conseguiram falhar tanto, e nunca antes tantos falhanços foram sintoma de genialidade. Nos termos do absoluto. Foi actor, cineasta, escritor, radialista, teimoso, soberano, deus menor reconhecido por quase todos os pares e deus Maior não consagrado (reconhecido apenas por uma estrita minoria que, não sendo muito, tudo vê e abraça, até ao magnífico Orson, lá no pedestal longínquo onde se encontrava, num éter esponjoso e, de resto, impossível de determinar em termos físicos e químicos).

Portanto, não era um homem como os outros, não vivia no seu tempo e do seu modo, seu - deles; havia o tal éter exclusivo por onde vagueava aparentemente imune a certas regras fundamentais. O aspecto era, tal como tudo o resto, único, o que, como tão bem notou Mark Cousins (historiador de cinema e criador do monumental The Story of Film), não lhe permitiria interpretar, quando a isso se dignasse, uma pessoa normal numa vida normal. Isso era para outros, os demais, como humildemente nos assumimos perante uma tal figura.

Dizem que não sabia lidar com os produtores, que não sabia reter perto de si aqueles que lhe podiam financiar os filmes (os deuses, pelos vistos, têm tudo à disposição menos um capital infinito). Tretas. Dignava-se a fazer o que lhe apetecia e quando lhe apetecia, gastava o que tinha e pedia, sobranceiro, o que precisava quando pretendia. Tal criatura, na componente que tinha de carne e sangue e que tanto gostava de mimar, era, óbvia e objectivamente, refractária a qualquer falta. Faltas essas que, a existirem, eram nossas e nunca suas. Não perceber isto é não perceber nada e houve muitos que não perceberam. Enfim, a acreditar no que se ouve por aí, os pobres de espírito seriam os primeiros a entrar no céu caso existisse. Uma pena que não exista.

Não era um homem como os outros, não era, e apesar de tudo…

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Por razões que nem sempre foram claras, a crítica especializada sentiu desde cedo a necessidade de incluir certos filmes numa categoria à parte, os ditos Filmes Sobre Tudo. Com esta denominação, críticos e estudiosos referiam-se a filmes que realçavam a atomização do homem num caos imanente que o transcendia, numa relação para todos os efeitos incalculável (como falamos de cinema e não de matemática, a melhor palavra para a correlação a estabelecer é inadjectivável). Filmes que, dentro da sua convenção e do potencial da arte em causa, ousavam almejar o infinito, sabendo que partiam do ínfimo. O Tudo que pode ter uma forma perfeita, talvez tenha, como não, mas sobre isso nunca verdadeiramente saberemos. Não como definição. Não como modelo. Nem sequer deuses de carne e osso, os únicos que existem, e que um dia vão morrer como qualquer um de nós. Para quem cria na prisão de um corpo vivo, a única forma de se aproximar do Tudo é, portanto, a partir do Caos, a começar pela consciência da pequenez, do infinitamente pequeno em comparação.

As obras em causa tendem a ser fragmentárias e necessariamente têm por força de quebrar as regras em vigor – o movimento que invocam é por natureza revolucionário.

O espraiar para a condição universal que a Revolução Industrial permitiu é também, estamos em crer, circunstância essencial para que estas obras possam surgir. Tribos e conquistas de território à parte – nos séculos XVIII e XIX norte-americanos havia literatura no Massachusetts e não no Velho Oeste por algum motivo –, religião e nação, tomadas como conjunto ou cada uma por si na necessária medida, nunca verdadeiramente separadas, eram conceitos de fecho, e, por isso, comparáveis a masmorras onde pouca ou nenhuma luminosidade entrava. (Ainda são, mas já não podem abarcar a totalidade de uma sociedade, digamos.) O espirito que se revolta e espreita para fora tende a ser esmagado por forças que se habituaram a temer o outro, e também porque, ironia das ironias, grupos fechados não podem, se querem manter a integridade, aquilo que julgam ser o seu sentido, deixar de se ver como o superlativo da espécie, logo o outro tem de ser negado.

Com a introdução da maquinaria, interferência penetrante a partir do centro da paisagem, esta tornou-se objectivamente mais ampla, alterou-se o bastante para modificar o olhar do – conceito que antes não existia – cidadão-comum; pela sua natureza, de aspirante a burguês a crítico altivo da burguesia, enfim, da ordem para o caos. Por outras palavras, tornado modelo dessa nova cidadania, passou a aceitar a diferença que o tipo de génio (como sinónimo de inspiração) que acaba a fazer arte sobre Tudo sempre impõe / evoca (estão assim criadas as condições mínimas necessárias para esse efeito).

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The Other Side of the Wind é o título de um filme, do qual vemos alguns excertos, dentro do filme que nos é dado a ver por Orson Welles. Filme total, composto por fragmentos.

Um afamado realizador de Hollywood não consegue terminar aquele que pretende como o seu filme-testamento, dado que o outrora basto orçamento já foi totalmente dissipado. O filme dentro do filme, o outro lado de um vento sem corrente definida. Quem tem dinheiro foge a sete pés dos breves excertos que lhe apresentam – figurações de grande beleza de uma terra desolada, habitada por gente bela e desolada. O último recurso é a organização de uma espampanante festa, de modo a trazer o cineasta de novo para a ribalta. Aparece toda a gente, menos os que importam e o actor principal; nada é o que parece – a desolação tomou conta de todo o espaço disponível, o que inclui a memória... E o porvir, fora do campo da arte (do filme), não é senão uma extensão desta, confronto…e perturbação, e tontura.

As personagens são reflexos de uma época, talvez a mais fascinante e contraditória do século que Hollywood já leva, os anos setenta do século passado. Para todos os efeitos, excepto pelo facto de a première ter ocorrido num ecrã de televisão perto de si, mesmo à sua frente, melhor dizendo, há menos de dois meses, é um filme dos anos setenta, pois foi lá que foi pensado e filmado. Tal como em Velvet Goldmine, de Todd Haynes (e já temos dois de dois-três-quatro), a cada personagem corresponde uma figura-sombra que com maior ou menor dificuldade julgamos (somos tentados a) reconhecer, desde logo pela figura tutelar de John Huston, cineasta que faz de cineasta, mas que não se representa necessariamente a si próprio, nem a Orson Welles. É portanto uma armadilha. Mecanismo perfeito de intrusão na realidade com um pressuposto desorientador. A visualidade corre em paralelo, pois assenta numa montagem frenética, onde pontos tocam pontos, estabelecendo uma relação de proximidade, afectiva, mas não necessária e imediatamente…concordante (não nos termos da acção-reacção-acção da imagem-movimento de Deleuze; por isso, se optou por usar a expressão pontos, o que na linguagem do cinematógrafo se refere a conjuntos de momentos que não se interligam como se fatalmente se dirigissem para um objectivo pré-definido). Não há uma relação entre uma imagem e a seguinte nos termos do romance do século XIX, vide Deleuze.

O verdadeiro teste para o espectador moderno é a sua relação com o desequilíbrio, a forma como aceita a perda de coordenadas, como se deixa levar para o abismo das perturbações sem instruções precisas, ou mesmo sem qualquer orientação, enfim, como aceita tornar-se em algo (não alguém) diferente por causa de um filme, não porque a história ou os juízos em causa o impressionaram, mas pelo facto dos seus apoios terem sido brutalmente sacudidos e atirados para onde o olhar não alcança. Vulnerável e logo inteiramente despojado. Asceta da voragem e das quedas infinitas, na contemplação de maciços montanhosos, de tempestades inconcebíveis, formas capturadas a duas dimensões de tão remotas. Ser na plena aceitação da sua precaridade. Na posse do privilégio último: a aceitação da sua natureza infinitesimal. O espaço intelectivo onde também habitam as personagens e os leitores de James Joyce, Marcel Proust e Robert Musil. O Leopold Bloom de Ulysses, o narrador de À la Recherche du Temp Perdus, o Ulrich de O Homem sem Qualidades, eu, qualquer um que se tenha perdido – venha a perder – naquelas páginas. E quanto a filmes: o espaço por abranger de Velvet Goldmine (1998), de 2001 – Odisseia no Espaço (1968), do episódio 8 de Twin Peaks – The Return (2017), Pierrot le Fou (1965)de The Other Side of the Wind. Dois-três-quatro, e agora cinco – por enquanto. Como não podia deixar de ser, o tempo e um discurso…espontâneo soltam a enumeração.

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publicado às 15:24


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