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Easy Rider (1969),

por slade, em 28.08.18

também sobre sonhos, a ascensão do realizador e o êxtase no horizonte do desencanto (i.e., o crepúsculo algures na fronteira do Texas com a Louisiana):

easy.jpg

Acordar de um sonho é um imperativo que se presta a equívocos, mas também uma benesse, e convenhamos que não há assim tantas por aí. Como adormecer, o antecedente natural.

Verdade seja dita, não adormecemos com o propósito de sonhar. Adormecemos por duas razões, que se interconectam: cansaço e porque nos entregamos a uma expectativa, digamos, hábil que só um tolo confundiria com sonhar, enfrentar o dia seguinte no máximo da força, com toda a energia disponível após recuperação (daí a benesse, poucas coisas são mais salutares do que o descanso e a regeneração).

Sonhar implica um regime de excepção, que um ser desperto apenas pode simular. Nessa sequência, assim que foi possível, inventou-se o cinema – que, como se sabe, é o meio de simulação perfeito. Já antes, muito antes, outros haviam forjado os ‘mecanismos da ficção’. O cinema era o passo que faltava. Um primeiro problema: por razões facilmente entendíveis, desde muito cedo o cinema foi associado a uma suposta Idade das Luzes, de progresso imparável, o que criou na mente, quer do criador (produtor é a expressão que, então, melhor se lhe adequava), quer do homem comum, a necessidade do happy-end. Cinema como sinónimo de entretenimento, no sentido mais rígido do termo, i.e., para massas que não podiam nem deviam ser indispostas.

É quando aparece a figura do realizador, a figura que haveria de substituir o produtor como o…verdadeiro criador, para, enfim, libertar o cinema da prisão do final feliz. Não era, não foi tarefa fácil, o produtor perdera espaço, mas não necessariamente o poder de intervir, pois este colara-se ao capital, definitivamente na sua posse, num domínio dependente de elevado investimento. Avanços e recuos foram-se sucedendo até aos dias de hoje.

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Sonhos, cinema, simulação. Como o realizador soltou o cinema da exclusividade do entretenimento superficial, da queda no abismo da frivolidade.

Com o realizador, o gozo pelo risco, a revelação da metodologia do desencanto perfeitamente concebida e de uma vez por todas ancorada na personalização (no que o carácter tem de singular). A literatura como farol, a fotografia e o teatro como previsíveis e necessárias desculpas, ou seja, a criação de uma nova arte sob os olhos sedentos de alguns, os que mais importam (assim nos permitam o atrevimento). Para os que não acreditam na salvação divina, por fim o ansiado resgate.

Como sempre, toda a ideia procura refúgio num ponto específico, a verdade não se torna mais verdade, mas o 2*sapiens precisa de conforto, nada de novo, e neste caso o refúgio é o filme-matriz da ascensão do realizador, o exemplo indispensável em qualquer discussão. E, sim, há um sobre todos os outros. Filme espertalhaço, feito com muito pouco dinheiro. A independência do realizador não advém da nobreza de carácter ou da força da ideia (outras combinações também se aceitam), vem da disponibilidade financeira. Quanto menor o investimento, menor a interferência do produtor; e certos filmes, mais do que outros, são pensados para serem feitos livremente. O filme: Easy Rider, concebido por Peter Fonda e Dennis Hopper, e dirigido por este, em 1969, nem sempre nas melhores condições, tangíveis e intangíveis; como, de resto, se tornou apanágio do bom e rebelde Dennis H, devoto de um estilo de vida…excessivo.  

Easy Rider é a aventura sonhada de Billy (o mundano) e Captain America (o timoneiro) pelo sul dos Estados Unidos. Dois espíritos-livres, duas Harleys, um trajecto > todavia, e não sem ironia, a desembocar num destino, a meta no fim do caminho – local mágico que os espera de braços abertos (a validação do percurso).

Filme de superfluidade, da metáfora pela metáfora, metáfora sobre metáfora, filme que ilumina excessivamente - uma das suas maiores conquistas, que  fique claro. Simbologia e concretização em perfeito sincronismo. Constrói-se, portanto, no óbvio, tudo fica claro, e não demora muito, pelo produto de caminhos conexos. E como? A) Drogas; B) liberdade dos protagonistas em paralelo com as paisagens – e depois o contraponto com a outra gente, habitem ou não nesses espaços; C) Viagem (letra grande), i.e., viagem para um lugar que se materialize na plena expectativa, em suma, o El Dorado.

Os espaços abertos sempre se integraram bem no espaço fílmico… Tal como a música – e este foi o filme em que a rock song chegou em força ao grande ecrã, no final da década da sua afirmação. Descobri-lo é um prazer físico, permanecer sentado a grande dificuldade (pela inquietude, a dança não é para aqui chamada).

É mais. O prazer faz parte do jogo, mas, já o referimos, não é tudo. Se é cinema, é logicamente devolução, vemos acontecer e como bons espectadores fazemos questão de saber tudo. A obrigação do filme de realizador é, então, fazer-nos saber o que temos de saber, independentemente das consequências, não passar a mão pelo ombro carente de emoções delicodoces. Quem teme o isolamento do desencanto, da perda, cedo perde o interesse, mas quanto a isso nada há a fazer. Não é simplesmente mais: é tudo!

Easy Rider começa por invocar a liberdade apenas para revelar que esta é, a partir de certo ponto, inacessível. A liberdade é sonho antes de ser conceito, sendo que a partir desse instante não deixa de ser conceito (e enquanto sonho e conceito pode ser vista como total, absoluta), não passa à prática. O sonho acordado não se cumpre, sonha-se. A delícia do não-atingível, a emoção sublime perante o que nos transcende; provavelmente, religião à parte (toda a hipótese evolutiva prevê uma ruptura, uma perturbação viral – que não interessa para estas enumerações), a maior criação do ser humano.

Sim, eles chegam ao destino almejado e fazem o que se propuseram. Quando regressam, o mundano rejubila, “sim, conseguimos – conseguimos, meu!”; responde o timoneiro, “não Billy, estragámos tudo…”. Pois foi - Por conseguinte, resta-lhes pagar o preço por tão nobre falhanço.

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publicado às 17:12

Delia Derbyshire

por slade, em 17.08.18

 delia.jpg

A tomada de consciência (são estes os termos a empregar, e não outros) das harmonias robotizadas de Delia Derbyshire, em 2018, a.d., resulta numa pequena maravilha: juntar três tempos num estado de sublime dissonância. Numa década, a sonoridade da anterior, cinco décadas depois. A década magna: 61-70 do século XX, como não podia deixar de ser.

Contingência da música electrónica dos primórdios, pois, para o caso, mais do que de talento musical, alimentava-se de possibilidades (e nesse tempo não eram assim tantas). Da necessidade de um mecanismo sustentado por resistências, chips ou pré-chips, memórias e processadores, quando para a maior parte nem denominação havia. Os sons não eram inteiramente sequenciais, não brotavam de ondas, mas de interacções fragmentárias, os tais 1 e 0, plims e ploms que, então, se tornaram no som da ficção científica, mormente do cinema de ficção científica.

Estávamos em meados dos anos 50. O potencial de destruição da Era Atómica pedia um novo tipo de imagens – invasões, naves espaciais, monstros, robôs e raios laser. A deflagração como hipérbole, a figura de estilo para um mundo novo, de rosto temível.

Tais imagens, na natural sequência de eventos, precisavam dos sons correspondentes. A banda-sonora da modernidade. Mas, à época, como antes referimos, os meios eram parcos dados os fins em causa. Computadores que ocupavam salas inteiras, capacidade (performance) na razão inversa do tamanho. Tirar desse equipamento primitivo sons já era desafio suficiente. O nome maior desses tempos: Raymond Scott e a sua Manhattan Research. Só a partir da segunda metade da década de setenta, aproveitando a evolução tecnológica, a expressão música electrónica entrou verdadeiramente no léxico e na prática corrente.

Do tempo que mediou, nos dois lados do Atlântico, um outro nome merece destaque: Delia Derbyshire. Com ela, podemos dizer, o som electrónico fez-se música antes de tempo. Ziwzih Ziwzih OO-OO-OO (composição criada para uma série de TV da BBC, Out of the Unknown) é, talvez, a primeira construção sonora por meios electrónicos a que podemos chamar canção.

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publicado às 12:35

Ian e o (supremo) desconforto

por slade, em 08.08.18

ian.jpg

Nem sempre uma ferida profunda deixa grande marca à superfície. À distância, tal…sugestão (insinuação talvez seja melhor palavra) parece adequar-se perfeitamente ao suicídio de Ian Curtis. Vocalista e letrista dos Joy Division, banda rock que alguns arriscaram delimitar (a Wikipédia arruma-os numa espécie de dupla prateleira, no post-punkgothic rock).

A morte aos 23 anos é por natureza um acontecimento tocante – e, evidentemente, os lamentos sucederam-se. Esta é uma espécie de tolos, não de bárbaros. Não nestes termos, pois sofremos por aqueles que deixou e o encontraram suspenso e de olhar vítreo na cozinha, a mulher e o filho pequeno, e sabemos reconhecer o génio quando é manifesto. Contudo, morto o génio, é obrigatório encontrar um sucessor. Já vimos isto acontecer inúmeras vezes…

No pós-suicídio a banda liquefez-se, e os que restaram tornaram-se noutra coisa. Sucesso não lhes faltou, para que conste. Faz-vos lembrar algo? Sim, Pink Floyd – nome que tinha tudo e para o nada se deixou cair; também tornados noutra coisa qualquer com a partida forçada de Syd Barrett. Os restantes Joy Division tiveram esse mérito: tendo escolhido outro caminho, perceberam que o nome já não lhes pertencia. Converteram-se em New Order a partir de então. Ordem, na aparência, mais sedutora (porque a tender para a luz) que a antiga Divisão, apesar da denominação desta. Raras vezes um nome foi armadilha mais eficaz, pressupondo o incauto ouvinte como presa disponível (que, em bom rigor, não pode deixar de ser).

Armadilha? Sim, mas isto não diz nem metade, pois em certos logros caímos com gosto. A Divisão de Ian Curtis foi um espaço de absoluta desolação, algo que já intuíamos, tendo, no entanto, avançado para o seu vórtice com absoluta receptividade. E como funciona? Atente-se nas palavras certeiras de François Truffaut: “Existe na própria ideia do espectáculo uma promessa de prazer, uma ideia de exaltação que contradiz o movimento da vida, isto é, a rampa descendente, degradação, envelhecimento e morte. Resumindo, por natureza, o espectáculo é algo que sobe, enquanto a vida desce, e, se aceitarmos esta visão das coisas, então o espectáculo, ao contrário do jornalismo, cumpre uma missão de mentira; mesmo assim, continua a valer o seguinte: os maiores do espectáculo são aqueles que conseguem não cair na mentira e que fazem o público aceitar a sua verdade, sem todavia ferir a lei ascendente do espectáculo. Estes fazem que se aceite ao mesmo tempo a sua verdade e a sua loucura particular a auditórios com uma loucura diversificada.

Por outras palavras, o espectáculo assenta numa integridade que está para lá da felicidade ou do sofrimento, ou de bem e do mal, já agora.

O sofrimento honesto, a vertigem do abismo ou a loucura fértil dão extraordinárias performances… O espectador, na já mencionada disponibilidade, e apesar de tudo a uma certa distância, não resiste – Opõe-se numa primeira fase, a programação genética prende-o pelo braço; então, num dado momento, uma pequena agulha, vinda sabe-se lá de onde, atravessa-lhe a artéria hipersensível: um espasmo! Segue-se a libertação, e pode então o espectador contemplar a queda com o mínimo temor (a liberdade é transe e fervor antes de ser responsabilidade). 

Quanto ao suicídio de Ian, não é crível que o motivo tenha sido uma violenta paixão

(pela jornalista belga Annik Honoré)

bloqueada por um nobre sentimento de culpa e levada, por essa razão, ao paroxismo, como diz a lenda. A vida, às vezes, pura e simplesmente deixa de poder ser vivida.

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publicado às 16:59


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