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O multifacetado George H. Smith (norte-americano, nascido no Japão ocupado em 1949), escritor, orador, académico, notório ateu e libertário, coloca a racionalidade na vanguarda da frente de combate contra o efeito religioso, e fá-lo razoavelmente bem na sua obra mais famosa, Atheism - The Case Against God. Dá para todos os lados por igual, aparentando a distância necessária que permite a discussão em termos precisos (i.e., a validação pela norma do método), mas tudo se resume a uma lógica tão evidente quanto vulgar:
É a quem ostenta uma qualquer proposição que cabe a sua prova. O ateu não assegura, não afirma nada, apenas não crê em algo que outros garantem existir para lá de qualquer dúvida. Pois que o provem. Se não conseguem fazê-lo em términos racionais, a falha fica exposta, a contradição torna-se óbvia. E, é claro, nenhum crente poderá provar racionalmente o que por definição é ininteligível.
Como era de prever, Smith rejeita com todas as forças a hipótese niilista, que funde com a hipótese pessimista. Certamente por conveniência para com o libertarismo à là americana, que professa. O libertário made in América é por natureza exclusivamente autocentrado, o homem é levado a crer em si próprio e, sem contar com ninguém, a caminhar para a sua, por assim dizer, emancipação. Percurso virtual, pois, que nas palavras de Smith desagua…na extravagância da felicidade. Excessos de um idealismo proto religioso; um aborrecimento para ateus. É de capitalismo que falamos, pois claro!
O caminho mistura, então, a responsabilidade pessoal (com a qual qualquer racionalista concordará) e a busca da felicidade. Todavia (o maior mas que se possa conceber) o mundo é irregularidade, acidente, ou, pelo menos, contem uma fortíssima probabilidade de acidente. O Universo não se preocupa com ninguém, crianças morrem aos milhares todos os dias, a morte é um acto solitário (já dizia Bradbury, e nada é mais óbvio), ineludível. Temos de partilhar espaço com uma espécie que não hesita em ser hostil, e por muito que nos distanciemos não podemos escapar, pois fazemos parte dela. O Universo, já que o mencionámos, qualquer coisa como 99,99999999999999999999999(…)% de vácuo a 270 graus negativos, e a maior parte do restante, a substância material galáctica (estelar ou planetária), ou ainda demasiado fria, ou excessivamente quente (de resto, a maior parte); uma força que o mais das vezes esmaga tudo o que se encontra nas suas cercanias sem dó nem piedade – chamam-lhe gravidade, o que, pelo menos na nossa língua, diz quase tudo.
Quer dizer, a responsabilidade pessoal choca com um meio frágil, quando não adverso, e circunstâncias que não raro podem ir da dificuldade à catástrofe.
Ao libertário à là americana faltar-lhe-á compaixão pelo sofrimento alheio, e por essa razão pode fugir para a ideia da felicidade, só sua – porque a sonha. Ser ateu é, ainda assim, ser ateu num dado contexto.
Mas escapar é, no máximo, resvalar pela verdade. O ateu, se se faz ateu por via de uma busca racional pela verdade, não importa qual nem em que termos – sabendo que é trajecto com inúmeros obstáculos, e que algum não conseguirá transpor –, não pode deixar de observar a débil mecânica da existência. Caminho que percorre inserido num certo contexto, nem sempre como quer, mas com a certeza de que não se pode retirar a meio. Antevistas então as hipóteses, só lhe resta a filosofia pessimista. E uma vez na posse desse conhecimento, pode ou não aceitar a responsabilidade; caso a aceite, tanto melhor, fará por si e pelos outros o que lhe for possível, encontrará o sentido da sua vida (a satisfação é outra coisa) … O ateísmo conduz ao pessimismo, mas este não leva forçosamente ao niilismo.
Todas as semanas apanham um novo terrorista de Alcochete, com o resultado do costume: prisão preventiva. Todos pela medida grande, que isto com terroristas não se brinca.
De uma vez, ao que consta, também se apresentaram aos Justiceiros 58 Anjos do Inferno. Gente do pior dentro da gente de má índole, a acreditar nas acusações: tentativa de homicídio, tráfico de armas, tráfico de drogas, agressão agravada e roubo. Pois imagine-se, o Justiceiro de serviço entendeu por bem que apenas 39 dos 58 ficavam em prisão preventiva. 39 de 58 potenciais homicidas, traficantes de armas e drogas, agressores e ladrões. Um bom número, ainda assim. Tinham, a acreditar nas más-línguas, planos que passavam por…atropelamentos em massa de membros de gangues rivais. Não todos (nem a todos, todas as acusações), e por isso alguns ficaram excluídos da medida de coacção máxima. É assim que funciona quando funciona. Leio no DN esta pérola de…bom senso (?): “Quando decidiu as medidas de coacção aos membros dos Hell’s Angels, o Tribunal de Instrução Criminal teve em conta a sua condição social e concluiu que todos estavam inseridos social, profissional e familiarmente…”. No mesmo artigo também é dito que 15 deles já haviam sido condenados anteriormente, uns quantos por ligações ao homicídio (eis um concretizado) de Alcindo Monteiro.
Resta a questão:
Porque é que se agiu de modo tão diferente com a maltosa envolvida no ataque a Alcochete?
Respostas possíveis:
Porque com o futebol ninguém se mete!
Porque potenciais homicidas há muitos, contam-se aos biliões (sete, incluído crianças), e não os podemos prender todos preventivamente – seria, inclusive, em certos casos, ser juiz em causa própria.
Porque docinhos demasiado humanos dados ao tribalismo pós-moderno dão óptimos personagens de filmes de Hollywood, já não servem como exemplo de uma justiça rectilínea e utilitária – tornaram-se, digamos, exclusivamente metafóricos.
Não, esta não!
Mais a sério: discordo em absoluto de uma justiça de exemplos, logo com a instrumentalização do ataque a Alcochete (que, sim, foi executado por delinquentes! Não por terroristas). Quer dizer: recuso-me a vender a minha República a Justiceiros por tão pouco.
Não durmo mais descansado, para que conste, mesmo com aqueles 38 (os de Alcochete) na prisão. Mais ainda: irrita-me profundamente ter de os defender, é quase tão embaraçoso como ser apanhado com um disco dos Bon Jovi (juro a pés juntos que nunca estive a menos de cinco metros de um!).
Por essa razão, aos Justiceiros, de toga e sem toga, uma de duas: a fúria (que apaixonadamente rejeito) ou uma canção (com que gentilmente os mimoseio, mesmo sabendo que muito poucos de entre os sete biliões a merecem):
Marvin Gaye – What’s Going On –
Mother, mother / There's too many of you crying / Brother, brother, brother / There's far too many of you dying / You know we've got to find a way / To bring some lovin' here today, eheh / Father, father / We don't need to escalate / You see, war is not the answer / For only love can conquer hate / You know we've got to find a way / To bring some lovin' here today, oh oh oh / Picket lines and picket signs / Don't punish me with brutality / Talk to me, so you can see / Oh, what's going on / What's going on / Yeah, what's going on / Ah, what's going on / In the mean time / Right on, baby / Right on brother / Right on babe / Mother, mother, everybody thinks we're wrong / Oh, but who are they to judge us / Simply 'cause our hair is long / Oh, you…
Numa época em que ao actor se pede somente uma de duas, ou performance (entusiasmo) ou ausência (anonimato), um filme como Manchester By The Sea ressoa como um chamamento das profundezas. Bons papéis, como antes se dizia, que o talento transformava em notáveis criações. Falamos de ontem, mas não tem porque ser assim tão diferente no tempo presente... E não é, não nas suas determinações, na sacrossanta harmonia do trabalho artístico. Basta esperar pelo momento certo: saber reconhecer e não desaproveitar (aqui, refiro-me à responsabilidade do espectador).
Já vi um pouco de muita coisa, mas nunca quem resistisse à perda em continuum de Terry Malloy / Marlon Brando em On The Waterfront – boa parte, diga-se, antes do filme ter começado – até ao ganho final, o que importa. E, neste caso, resistência é a palavra certa no lugar certo. O herói que arrisca despojar-se do potencial (e que potencial) de força bruta para abraçar no seu âmago a vulnerabilidade que lhe ensinaram a rejeitar. O verdadeiro herói – o anti. Todos recordam a célebre sequência em que o irmão (o desmedido Rod Steiger) o confronta dentro do taxi, mas nunca foi a minha favorita – prefiro a cena da deambulação pelo bairro de Terry e Edie (Eva Marie Saint é o nome que falta), a luva que cai e Terry apanha, depois senta-se no baloiço, e a seguir voltam a caminhar; sem frases para a memória, mas por onde passa toda uma infância difícil, uma vida que a certa altura se poderia ter composto, mas não passou do que passou. Tão jovens, ainda tão jovens, e já os sonhos se perderam.
Manchester By The Sea é um regresso a esse sistema – que, lá está, o pessimista empedernido, o lógico, o realista duas vezes de Camus (era assim, não era?), tem a obrigação de declarar perdido, enquanto aguarda vigilante. Manchester junto ao mar, que afinal é algures no Massachusetts. Filme sem a dinâmica das correntes sociais reagentes de On the Waterfront, pelo menos não tão expostas, sendo estas, as de MBTS, por assim dizer, mais (ainda mais) centradas na intimidade familiar. Filme que adopta a tragédia, é o motor; em certo sentido mais terra a terra, e que, no entanto, sabe como fazer-se integrar plenamente no sistema (já que foi assim que lhe chamámos). Filme que vive porque lá estão Casey Affleck, Michelle Williams, Kyle Chandler e o muito jovem Lucas Hedges, como tem de ser. Ah, e a cereja no topo: resiste a todos os vícios de filme cool, mas não teme quadros fortes. O reencontro de Lee/Affleck com Randi/Williams é seguramente uma das sequências mais doridas e dolorosas da história do cinema. Campo/contracampo que ousa mostrar os dois no ecrã em praticamente todos os planos. As costas, os braços que seguram, as mãos nos bolsos e as pernas que titubeiam dizem tanto como os olhares; ou as bocas que tentam emitir sons lógicos e nem sempre conseguem – manisfestação do indizível, a expressão do sublime.
O…realista duas vezes pode por fim, ainda que brevemente, sentir-se vingado.
O espírito de cada época é uma prisão a que ninguém escapa, pois não se percebe como tal. Mecanismo ilusório, visto como livro de instruções; isto é, uma necessidade determinada por regras supra-terrenas. Enfim, crença que não se distingue da fé, já estamos habituados.
Zeitgeist – Espirito da época, como conjunto de palavras com um certo significado, nada a dizer. Olhando para atrás, olhar científico, de precisão, sim, terá havido um, interconexões e influências que mais tarde podem ser expostas e analisadas. Mas já quanto ao hoje a olhar para si próprio… Sejamos escrupulosos (vamos lá, ousados): não é mais do que um colete à prova de bala que não é dado a usar à maior parte, mas protege alguns, que se julgam eleitos. Da maior parte, uma esmagadora proporção também os vê como eleitos. É a força inabalável e perniciosa do efeito religioso. A táctica é sempre a mesma, banal: eis a imensidão universal, insubstituível, firme, brilhante, activa; agora olha para ti, infinitésimo, ajusta-te e aguarda, respeita quem te guia – e, entretanto, vive. Como se livre, é a propriedade escondida no subtexto – referir o direito à liberdade era meio caminho para a sua percepção como obstáculo.
O infinitésimo olha para todos os lados e nada avista para lá do universo reconhecível, o que o assusta: ensinam-lhe o Caos, como substância, mas, acima de tudo, como conceito desviante e aterrador. A substância caótica é transformável em imagem, logo tem mais força, mas dissipa-se com o tempo, uma vez estabelecida a rotina; o conceito pode viver para sempre na abstracção que invoca. Não lhe dizem, ao infinitésimo, que o Caos, no seu contexto, pode ser sinónimo de libertação, de total libertação, para lá do sossego das vistas curtas e da acalmia dos sentidos. Liberdade que nesses termos é, em si, reconheçamo-lo, inumana. A nossa estrutura óssea teme-a, a estrutura mental, quando sabe mais (e sabe mais quase sempre), rejeita-a. Mas, vá-se lá saber porquê, os humanos sonham e (não raras vezes) reconhecem os seus sonhos. Pior, reconhecem-se nesses sonhos, o que tem tanto de terrível como de deslumbrante. Uma vez acordados, transmitido o vírus, sonham-se inevitavelmente nesses sonhos, no que supõem a plena racionalidade exclusiva da luz do dia. Ainda assim, o tempo passa e, desde o seus primórdios, o bom do sapiens sabe como escapar à influência desse poder (a sobrevivência assim o obriga, intuição racional que precede a, enfim, precisão da razão). A criança vê o fogo, sente o fascínio, mas não se projecta contra as chamas. Muito poucas tentam tocá-las sequer. As crianças, por definição, não se suicidam. Já os adultos, sim, atiram-se para a morte certa nas mais variadas circunstâncias. Seguramente pelo binómio: compreensão/absorção dos sonhos + não lhes ter escapado. Muito poucos, é claro, um em cinquenta milhões (cinquenta e um milhões trezentos e quarenta e sete mil e vinte e sete, para ser exacto). Nem sempre é possível escapar, a natureza dos humanos precisa dos seus…acidentes. Desses, para o que está em causa, interessam-nos os casos em que está excluida a doença: falamos de actos voluntários que não são desencadeados por sintomas depressivos. E casos em que é preciso ter absorvido o sonho, não simplesmente tê-lo compreendido, para que fique claro.
A construção toca, por fim, os céus, alguns, muito poucos, dos que não escaparam fizeram-no propositadamente. A morte sobreveio, mas por força do ideal extremo, o desígnio dos sonhos, ritual sacrificial assente no desejo de libertação. Se total, pois muito bem, melhor assim. Morre-se, mas nos termos de cada um.
No entanto, como alguém disse, a vida tenta impôr a sua conservação, seja por que meios fôr. Não pode ser de outra forma. Eis quando o cinema entra na equação… Filmes que a certa altura determinam o Caos e o [gerador / instigador / problemático / provocador / inocente + sujeito da acção] se salva no final (não importa se dorido ou não, se para nada, para a aterradora consequência ou para o final feliz (sempre na direcção do sol nascente))? Sim, filmes que se desvinculam de qualquer moral inclusiva (mantendo o decoro, no entanto, o rigor ético do indivíduo). Filmes que não apaixonam a vasta maioria, por razões já referidas. Filmes feitos necessariamente depois de 1970, com uma excepção: os filmes de Chaplin antes de Limelight. Filmes feitos para a vida, e logo da vida; afinal, falamos da sublime libertação.
E exemplos? Três dos mais notáveis: Dawn of the Dead (1978), de George A. Romero, Escape from Los Angeles (1996), de John Carpenter, e Rollerball (2002), de John McTiernan. Quanto ao último, pelo que foi dito antes e por ter sido dirigido por quem foi e quando foi, é, neste momento, o filme mais importante do século XXI.
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