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Os caminhos improváveis da sexualidade de Hannah Harding levam-nos, parafraseando um certo poeta, para mares nunca antes navegados. Exposição excessiva que intimida e desconforta. É caso para dizer: finalmente! Há por lá coisas tão notáveis como: arrojo, atmosfera, tentação pelo delírio, exposição ao ridículo, capacidade de sugestão, referência certeira, sonhos por cumprir que facilmente se intuem, risco e, obviamente, posicionamento político. Ainda por cima, dada a encruzilhada histórica que nos coube viver, escolheu o lado certo, onde também estamos nós. E diga-se que nunca um conjunto - nariz, olhos e lábios - foi tão desarmante e, ao mesmo tempo, tão labiríntico. É por estas e por outras que podemos desde já afirmar que é do melhor que este século (ainda tão jovem) já deu e tem para dar.
O Deserto dos Tártaros (1976), de Valerio Zurlini
Tal como referiu Jorge Luís Borges na sua Biblioteca Pessoal, num breve comentário sobre O Deserto dos Tártaros (o livro – Dino Buzzati), é a Poe e a Kafka que Buzzati vai buscar referências. Não se esgota ali a análise, claro, mas é certo que de ambos bebe muito. E sem ser sôfrego, decantando primeiro e só depois permitindo-se saborear. Ainda segundo Borges, as indirectas e outras piscadelas de olhos a Poe foram sempre reconhecidas pelo próprio Buzzati. Já as que supostamente lançava a Kafka, não.
Observando o filme homónimo de Zurlini –
(objecto sublime que mantém a premissa original: Drogo, acabado de ser nomeado oficial, é colocado na fortaleza Bastiani, nos confins do reino, lugar de grande beleza austera, potenciador de visões extremas. Uma vez lá, fecundado pelo espírito do local, pela voz dos já lá estão, nalguns casos há décadas, prepara-se para a chegada dos invasores.)
– é a influência de Kafka que salta à vista. O universo masculino, preenchido por rituais e repetições, máquina administrativa bem oleada, demasiado diga-se, orientada para um objectivo pré-definido (a espera pelo inimigo monstruoso), mas que depressa se percebe que só funciona, enquanto tal, se colocada no canto impalpável dos objectivos por cumprir. Nunca deixa de estar lá, e referimo-nos ao inimigo, não existindo verdadeiramente. Já a consequência é clara e irresistível. “Como um cão”, é deste modo que termina O Processo de Kafka, com a personagem abatida, cumprindo-se a pena de morte. Também os soldados colocados em Bastiani, nas tais fronteiras (montanhosas) do império, vão caindo, nunca deixando de cumprir a sua missão. Mas em nome de quê? Para quê? É quando Zurlini se aconchega a Buzzati, pois em ambos há mais mundo para além de Poe e Kafka, (e continuamos a pedir emprestado a Borges) há também “um gosto especial pela epopeia”. Para quê então? Por uma honra enraizada no dever. Pela grandeza inexplicável assente na virtude. O sopro épico, de superação, que nos acompanha desde tempos e livros no e do limiar da memória, e do qual os que nele se embrenham só se libertam pela morte. Mesmo perante um inimigo muito mais poderoso, mesmo que o inimigo não passe de um Fantasma (e por isso força ainda mais potente).
Livro e filme são superlativos e bem dignos de um século que julgou ter inventado tudo, mas só se superou quando olhou sem timidez para os Mestres.
A Vergonha (Skammen) (1968), de Ingmar Bergman
Um filme sobre a guerra dirigido por Ingmar Bergman. Eis uma frase que soa estranha. E em bom rigor, logo que o filme começa começamos a ouvir falar de uma guerra. Pouco se adianta, mas sabemos que já decorre há algum tempo. Mais, a fórmula usada nos planos iniciais do filme já é sintoma dessa guerra. E depois a guerra chega, i.e., é mostrada. Artifício de explosões depois dos maus presságios.
Mas isto é Bergman, como alguém mencionou, e se é Bergman e começa com um casal, então é tanto mais sobre o casal e a guerra não passa de uma desculpa. Talvez se exagere, mas, não esquecer, isto é Bergman. E guerras há muitas, para todos os gostos e desgostos.
As forças dentro do casal são desiguais: ele chora muito e quase sempre que o incerto lhe aparece sem máscara (máscaras, eis um símbolo caro a Bergman); ela, ao longo do filme refere-se três vezes a sonhos e até meio nunca perde a sua máscara (a da austeridade racional). Mas, por outro lado, ela sonha, e o lógico parece ser ele.
Ela, no que respeita a um dos sonhos, manifesta uma perplexidade: “parece um sonho, mas não meu; de outro que sonha connosco. E que acontecerá se essa pessoa acordar?”.
E o tempo passa, o casal vai perdendo tudo: o carro, a casa, a dignidade, a réstia de virtude em que tantos, quase todos, todos desta espécie crêem porque certo dia, sem que lhes fosse dado escolher, acordaram para a consciência da sua condição – da sua, enfim, humanidade. Consciência de que ninguém consegue fugir durante todo o tempo.
Por sonhos, ela:
“Tive um sonho. Descia por uma estrada lindíssima. De um lado havia casas brancas com arcos pilares; no outro, um parque sombrio. Junto às árvores, que cresciam à beira da estrada, corria um regato de água esverdeada. Depois cheguei perto de uma parede comprida, ladeada por rosas. Então apareceu um avião e as rosas começaram a arder. A sensação não era de todo má, pois era uma imagem muito bela. Via nos reflexos da água as rosas a arderem…
Tinha um menino nos braços, a nossa filha. Ela trepou por cima de mim, até que os seus lábios me tocaram no queixo. Sabia, sempre soube, que devia recordar alguma coisa, algo que alguém disse e eu tinha esquecido.”
E os olhos fecham, agora sim, de vergonha. Os que tentam esquecer, para mal dos seus pecados, tantas vezes do nada, outras depois de percorrido um caminho que julgavam / pretendiam contrário, acabam sempre enclausurados na prisão da memória. Recordar é o seu destino, a sua perdição, a sua hipótese. Lá está, ninguém consegue fugir o tempo todo.
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A luminosidade antecipa, dobra e explode, e deixamos de poder ver. É nesta aparente contradição que os impressionistas encontraram o seu caminho. Não era um logro, antes uma hipótese – na verdade, a única. Querer ver no excesso de luz um máximo de nitidez é apenas o senso comum para lá do senso comum a funcionar: quando nos atiram um jorro de luz directamente para os olhos passamos a ver melhor? Claro que não, é o oposto. Mas é mesmo assim ou é antes...o verbo correcto utilizado de forma errada? Digamos que sim. Incompleta pelo menos – como uma obra por concluir apenas com a parte de fora à vista e esta já praticamente acabada.
A luz é o tudo, melhor, o potencial do tudo. O brilho é a possibilidade de encontrar um qualquer sinal no meio da amálgama de hipóteses. É na luz que a ciência encontrou a sua possibilidade de investigação: não podendo o ser humano viajar fisicamente através das soberbas e inexprimíveis distâncias do Universo, ainda assim viaja, através do espectro de cor; já agora, o vermelho é o limite do ilimitado. É também a luz que estabelece a baliza: o que tenha massa, não pode ultrapassar, nem sequer atingir, a sua velocidade.
Esmagados pelo excesso de luz, os olhos fecham-se. Deixamos de poder olhar, o momento perde-se, mas só na aparência, pois resta a memória, que não é menor manifestação do real. Ver é filtrar e suster, processo não exclusivamente mecânico, como olhar-pestanejar. O real reflectido é o resultado do um processo; em rigor, da deflexão da onda luminosa que então se torna instante, único / irrepetível, difuso, realidade por vezes rejeitada, mas lá, mesmo se por omissão. Impressão sobre impressão, observando os pontos de fuga, que se mantêm, que suportam a visão, que a consolidam, todavia paredes meramente indicadas / indicativas (não erigidas – como nos cenários de Brecht ou em Dogville, de Lars von Trier, que foi beber a Brecht). No fundo, tão simplesmente a realidade poética das impressões do artista, o quadro íntimo da sua visão do real. Ou, por outras palavras, a modernidade sem equívocos, aqui e agora no nosso colo redentor, e não como algo impalpável que se fazia anunciar, contudo com a imposição de nunca chegar, desde o início dos tempos. A verdadeira revolução, pois é disso que se trata, é a que se forma e revela no indivíduo, não a que se sustenta na maquinaria, no ideal ou no poder da instituição.
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