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Ninguém respeita mais o sagrado que os não crentes. Sem livros de regras acoplados ou discursos fáceis – caminham sem protecção. Sabem escolher, gostam de escolher, é o seu desígnio. Mais: ao não crente, por norma, dá-lhe para a rebeldia. E quando lhe dá para a confissão, fá-lo por se querer reencontrar e não para alcançar a absolvição. Méritos, esses, não são sequer comparáveis, pois, convenhamos, é muito mais assustador saber que nunca se saberá o que se encontra para lá do Universo visível e invisível, do que imaginar lá uma divindade tendencialmente benigna à sua imagem.
Dito isto, por osmose, meio caminho entre a inevitável ternura e o sonho racional, circuito de apertada variância, fui levado a reviver o momento maior da primavera desse bem-aventurado ano de 1999: a estreia em sala do sexto filme (terceira longa-metragem) de Todd Haynes, Velvet Goldmine. Na boca do homem comum: ardente revisitação do breve período que no início dos setenta do século passado ficou conhecido por Glam-Rock. Filme apresentado em Cannes no ano anterior (o medíocre 98, em que nada de relevante se passou, enfim, um Presidente esteve para ser destituído porque todos menos o próprio se lembraram de estabelecer uma correlação entre sexo e fellatio).
Todd Haynes não é homem para brincadeiras, que é como quem diz, só brinca com coisas sérias:
[Se bem nos recordamos, a primeira vez que ouvimos falar dele andava a brincar com Barbies e Kens, e com isso aproveitou para dar corpo à vida trágica de Karen Carpenter, em Superstar: The Karen Carpenter Story (1987).
Depois, animal obstinado, tomou em mãos Jean Genet, ficando-se muito naturalmente pelo sentido genérico, que é como quem diz, menos pelas palavras e mais por gestos de pura rebeldia, algum horror e ultraje gay associados – por puro prazer escapista – ao grande escritor (quem não viu ou quem não se deixou fascinar pelo único filme que Genet escreveu e realizou, Un Chant D’Amour (1950), que atire a primeira pedra) – O filme: Poison (1991).
Tempo passou e, em meados de 1995, novo tiro certeiro na consciência colectiva: SAFE. Filme que – por princípio – desassossega. Julianne Moore (mulher sempre na circunvizinhança da beleza, o que a torna quase sempre irresistível) interpreta uma mulher de classe alta que desenvolve uma estranha alergia ao meio-ambiente; os adaptados (marido e amigos) não a compreendem e os fanáticos new-age querem, dizem que querem, mas não a podem salvar; pior para ela que se entrega aos segundos…]
Mas mesmo tal – que é bastante – parece muito pouco quando em confronto com o que veio a seguir.
Velvet Goldmine, nome de filme e nome de canção escrita e composta por um génio, o falecido Bowie, mas que não pertence ao alinhamento de nenhum dos seus álbuns. Mesmo assim, não foi escolhida por acaso – por exemplo, tem um título fabuloso e plenipotenciário. Não se refere concretamente a uma mina de ouro, mas a uma sala de delícias revestida a veludo, sala de transformações e ambiguidades, da qual os monstros, ou sequer a hipótese da monstruosidade, ficam à porta. Quem entra? Como reconhecer os monstros que não se vestem como tal? Como reconhecer um disfarce entre transfigurados e dúbios? Multiplicando o disfarce até ao ponto em que já não é possível notar as diferenças para com a primeira figura? E, aqui chegados, estamos a falar de quê: música ou filme? Sejamos claros: o filme entrou pela música adentro.
Mais: como lado-B, é por definição uma canção de retaguarda; o que, contudo, não a circunscreve nem pode circunscrever, pois também (porque não?) é uma canção extraordinária: ritmo e exposição avant-garde, absoluto de fábula e verve em doses massivas. E ainda assim sem posição entre os pontos cardeais do autor, o apoio de um single, que então (no inimitável 72) não fazia sentido um disco que não mudasse de lado. Uma canção com contornos de esquecida, com a qual, uma vez descoberta, se estabelece a seguinte relação emocional imediata: como é que isto ficou fora do Ziggy Stardust? Ficou, nada a fazer. Era um sinal, e por aí nos ficámos por duas décadas e meia.
Restava-nos esperar pelo ‘impalpável que nos vai consumindo’, isto é, sem certezas mas grandes expectativas.
Até que veio Todd e com Velvet Goldmine reescreveu a História. É assim que as coisas funcionam. Ironia das ironias. Hipótese vagamente estatística. Outros chamam-lhe fé.
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A História segundo Todd começou tarde na evolução humana, com Oscar Wilde. Encaminhado para o seu fabuloso destino (e, no entanto, há quem, menos imaginativo, o defina simplesmente como trágico) por extraterrestres benignos, que o deixaram à porta dos Wilde. Provavelmente bastardo, com toda a certeza génio. Enquanto criança, no primeiro dia de escola, expõe a sua aspiração de vida aos colegas e ao professor:
O que é que queres ser quando cresceres?
Quero ser um ídolo pop!
É o primeiro de uma linhagem de adoráveis marginais, estetas de uma nova era, que, sustentados numa pose que propositadamente mesclava a superioridade intelectual com o desvario estético, interagiam com a sociedade, na qual habitavam por óbvia necessidade, mas apenas como se nela pairassem. Como os futuros anjos vingadores, mas, como antes se dizia, com a pena como arma, e nunca a arma como arma.
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Décadas depois, e malograda a revolução proposta por Wilde (a homossexualidade, imagine-se, fora telhado de vidro com que não contara - ou deixara de contar - e que monumental piscar de olhos ao desabrido espectador!), Jack Fairy (personagem imaginária?) recolhe o testemunho. Apanhamo-lo, como a Wilde, também ainda criança, no momento em que é sovado por uns quantos colegas de escola. Quero ser um ídolo pop! – Tendo-o dito, o que é mais do que provável, Jack Fairy já não surpreendeu, apenas se expôs. Pagou o preço, exibindo o interior, fairy – fairy tale – Não! – fairy tail. Contudo também se abriu à esperança. Ouve-se:
“A infância, dizem os adultos, é a época mais feliz da vida; mas, desde que se lembrava, Jack Fairy sabia que não era assim. Até àquele dia misterioso, em que descobriu que havia outros como ele. Escolhidos para feitos memoráveis. E que um dia este mundo miserável lhes iria pertencer.”
E enquanto se escuta, observamos a metamorfose. De um fio de sangue que lhe escorre do lábio para o queixo penetrante, transmutação milagrosa, como água em vinho ou o pensamento disperso em ideia firme, Jack Fairy gera (pois é de uma germinação que se trata) batom e pinta os lábios, e de uma lágrima enlameada, eyeliner... Quando sorri para a câmara, já não é o sorriso dos fracos, mas também não é o sorriso dos justos, talvez não seja sequer um sorriso, e antes um esgar aberto indistinguível de um sorriso. É a manifestação da confiança.
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Anos 70, Londres, sob o habitual céu cinzento, “refulge de brilhantes e maquilhagem”, uma nova ordem simbólica emergiu, fundeada na cena musical. Recolheu e abrigou miúdos, lascivos e os “náufragos das sarjetas”, acenando-lhes com o excesso de cor e oferecendo-lhes ídolos que se parecem com os seus reflexos nos espelhos. O Glam-Rock reina, e disso somos informados pela insuspeita BBC.
“Todos somos bissexuais!” – Palavras aladas vindas da boca de um jovem sorridente com uma mulher nos braços.
Não é bem assim: “É só uma frase que hoje em dia soa bem. Mas para ser gay é preciso fazer sexo à maneira gay, e isso, enfim, a maioria destes miúdos nunca conseguiria.”
E quem fala nestes termos? Curt, Curt Wild! Por esses dias o número dois do exército revolucionário. É o remoque: quando a simbologia começa a ruir, uma questão de tempo, a minoria volta ser simplesmente minoria; nos becos escuros não cabem assim tantos, mesmo que se amontoem.
O líder da sublevação, o “santo patrono”, é Brian Slade; um tipo de passado dúbio, entretanto transformado em semideus pela intervenção de um produtor musical ambicioso. Mas, mais uma vez, nem tudo é o que parece, a semidivindade é afinal um homem no limite, incapaz de continuar; através do reflexo no espelho (neste filme temos, enquanto espectadores, continuamente de fazer um esforço semelhante ao das personagens para perceber em que lado do espelho nos encontramos) entrevemos o desespero que o consome; de divino, na aparência, nem sequer o romantismo potencial da causa perdida.
Então, num derradeiro esforço rumo à salvação, simula o seu assassinato em palco…
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Nova Iorque: 1984. Dez anos depois. A um jornalista, Arthur Stuart (‘o britânico residente’), é dada uma missão: descobrir o que aconteceu a Brian Slade após a descoberta da encenação, que, logo sabemos, lhe destruiu a carreira.
Nova Iorque. O céu cinzento, tal como as ruas; como autómatos, milhares de pessoas deslocam-se mecanicamente para os seus empregos. De um imprevisto ecrã gigante, Tommy Stone, músico de dimensão global, anuncia a sua nova tour. Um grupo de pessoas, onde se inclui Arthur, observa sem entusiasmo; todo no ecrã. O espectáculo centraliza, leva para um ponto distante, e, assim sendo, esgota-se na sua própria representação. A ideia revolucionária ter-se-á perdido algures no tempo, durante a década anterior. No final da apresentação, agravo último, Tommy Stone agradece ao Presidente Reynolds (aberração que remete para o infame Ronald Reagan, é claro!).
Pela mão do desajustado Arthur, que em tempos viveu de perto os tempos gloriosos do Glam, é o tempo da recordação. Pode então iniciar-se a viagem da memória pelo Paraíso Perdido. Que obviamente não existiu senão no seu sonho.
Que, por fim, quinze minutos passados, comece o filme…
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Do que se disse e do que ficou por dizer, como convém, o seguinte:
- A inscrição estética remete para figuras reconhecíveis – Brian Slade | David Bowie e Curt Wild | Iggy Pop.
- Estrutura-se exactamente do mesmo modo que Citizen Kane.
Ou seja, para a obtenção de coordenadas, joga com duas expectativas cúmplices: 1) que vamos necessariamente utilizar a nossa realidade e 2) a nossa memória fílmica. Integrados no sistema, podemos fazer coabitar ambas as expectativas. A realidade fixa-nos, é a ancoragem da segurança, e a memória dos filmes vistos, melhor ainda se forem considerados emblemáticos, liberta-nos para o prazer do reconhecimento das fórmulas, abre-nos o ego. Sem querer, julgando o contrário, oferecemos o flanco.
Pior para nós (claro que não, melhor, muito melhor!), pois o objectivo de Haynes é a desorientação. Flanco exposto, perante a ‘voluptuosa parcialidade do autor’, pouco mais nos resta que cair na armadilha. O fascínio de um universo identificável, intelectualmente exposto, ainda que em modo embriagado, e afinal tão-somente uma versão gay da História da segunda metade do século XX.
Não uma versão panfletária – entenda-se, o que apenas serviria para acantonar forças, quaisquer que fossem. Antes utilitarista, expressa pela resistência da arte, auto-referencial no jogo de espelhos (veja-se os inúmeros piscares de olhos, metade em tom de gozo – vive la révolution! –, metade ao ritmo do desencanto), analítica, temerária, jamais tentado escapar, por exemplo, ao eventual ridículo do gesto excessivo, tão típico da indolente associação que o outro – o que não é – faz ao comportamento gay (que nem, digamos, em casa encontra eco enquanto gesto sério, apenas como simulação).
Mais do que nas divindades do Glam-Rock (modelos de iconolatria, aristocratas destinados à queda), é em Arthur, homossexual reprimido de e em todas as épocas que lhe foram dadas a viver, que a nova-realidade se estrutura realmente, onde se pode estruturar como real. Humano, que não demasiado humano, é alguém que ficou sempre de fora. Sonhou, eventualmente foi chamado a participar, mas sempre como elemento residual (veja-se a sequência em que, como acompanhante de uma banda, tem acesso às proximidades do palco, mas quando se expressa, digamos, excessivamente, dançando em movimentos loucos, logo é mandado parar – go easy, man! A expressão da loucura é apenas tolerada como normal nos divinos, nos eleitos). Até que certa noite, de excepção, ousa tocar um dos deuses, Curt Wild, que lhe devolve o toque; no sexo gay recebe a lição de vida por que tanto ansiava: “E ainda dizem que não é natural!” – Sussurra-lhe Curt, sob o olhar atento dos regressados extraterrestres benignos. Anos depois, o mesmo Curt oferece a Arthur o anel místico, que antes pertencera a Wilde, a Jack Fairy, a Brian Slade (que, vimos a saber, se tornara “noutra pessoa”) e, claro, a Curt Wild (que nunca deixara de ser ele próprio, lição quem sabe se aprendida de Arthur, pois as portas ocultas tendem a estar próximas do nosso olhar; desembocam, é claro, em estranhos caminhos), os líderes entretanto caídos. Finalmente, um de nós, qualquer um, desde que mantido intacto o olhar interior, a aptidão de recolher ao infinitamente grande da individualidade (o que distingue o visionário do dia-a-dia, o sonhador, do homem comum), pode aceder à recompensa sem o tirocínio da arte, da genialidade ou do reconhecimento. Responsabilidade enorme, esta.
Arthur [um de nós, qualquer um] pode por fim aceder à Vida no sentido cósmico. O corpo para as Estrelas. Um nascimento. A representação das Origens perante os olhos lacrimejantes do espectador. Toda a simplicidade do cosmos exposta numa canção vagamente reconhecível que toca num rádio, num qualquer bar dos subúrbios de uma grande cidade. Ou pequena, que o tamanho, tal como a fisionomia, o estado e a condição deixaram de importar. Resumindo: entrámos na era da regularidade, não há anomalia para avaliar, nem excepção que valha pelo todo, enquanto indício de um tempo que nunca virá, pelo que se acabaram as desculpas.
Nunca foi nem nunca será tarefa fácil conseguir as palavras certas para expressar o fascínio que António Variações exerce. Para já porque não é lógico, nada daquilo devia fazer sentido. Uma viagem entre uma aldeia perto de Braga e Nova Iorque – veja-se a insolência. Salto no vazio. Acção-reacção na fronteira da probabilidade positiva. Porém quem o viu pela primeira nesse notável ano de 1982 (e notável porque um certo conjunto de pessoas a viver nos confins adiados do interior de um país só um pouco menos adiado nele cumpriu o seu oitavo aniversário) não poderá esquecer – uma espécie de saco de plástico enorme e transparente por cima de um corpo seminu, a barba acima de qualquer moda, os gestos petulantes em contraponto com a voz melódica, uma estranha simplicidade que não se harmonizava com a imagem nem com a ideia (em evidência) por trás da imagem e, no entanto, como se ele estivesse próximo, ainda que sempre em busca, da plena harmonia consigo próprio. Mais, também a inquietude em cada letra – porém expressa como um leve sobressalto –, o medo de não encontrar o caminho, de não viver de acordo com o potencial do desejo assumido, a ilusão perante o acto de viver (vida que hoje, ainda por cima, sabemos ter sido perdida – por curta que foi) e o fascínio assombrado ante a suspeita da solidão.
Atente-se nas palavras antes de cantar o Anjinho da Guarda, no Rock Rendez-Vous: “Porque não vêm até aqui. Eu sou um anjo bom – Não sou um anjo protector, não me peçam protecção, porque eu é que preciso de protecção. Porque é que não vêm até à frente? Estão muito longe, tenho saudades vossas.”
E depois, despojado, eliminadas as distâncias, simplesmente cantou…
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Se consegues resistir, caro leitor, ilustre destinatário de tão obstinada apologia, então faz o que te digo: salta de um penhasco e esborracha-te lá em baixo, pois nada mais te resta.
Ler a obra-prima de Gustafsson é um privilégio.
Desde logo pelo título. Principiando pelo português, é claro. Conciso, estético, qual poesia distorcida a remeter para a dureza do inequívoco.
E como soa no original sueco (?) – passo seguinte lógico, e temível. Qualquer um que já tenha tentado procurar a harmonia da língua original, por exemplo, nos títulos dos filmes de Bergman, bateu certamente nessa parede intransponível que é a língua sueca (que são as línguas nórdicas). Quanto à busca pelo tal título que irá perdurar na nossa mente disponível, enfim, acabamos por o ir procurar na língua inglesa, que tem a vantagem de parecer sempre natural.
Neste caso, o caminho não foi diferente: En Biodlares Dod - Death of a Beekeeper. Também não! Afinal, também não. Caminho semelhante a tantos outros, mas de resultado distinto. Prevalece o título em português. Como naquele outro, filme de Bergman para não variar, em que do sueco (Viskningar Och Rop) se fez Cries and Whispers, e parecia insuperável; depois bastou traduzir literalmente: Lágrimas e Suspiros. O mais belo dos títulos de filmes em português.
A Morte de um Apicultor.
Não é um livro sobre a morte, pois sobre a morte não há nada a dizer, não passa de uma indignidade provocada pelas circunstâncias ou por deus (e, nesta hipótese, tão só uma dupla-indignidade). Há uma morte, que é o fim de uma História. Uma morte construída também na dor e na perda física (e se o Homem fosse criação divina, a morte depois de um caminho de sofrimento não seria sequer uma múltipla-indignidade, não, um deus que permitisse à sua criação morrer no sofrimento não passaria de uma monstruosidade, mesmo se indestronável, mesmo se quase-todo-poderoso; se pleno, apenas na crueldade; não mereceria um único seguidor).
Então se não é um livro sobre a morte, só pode ser sobre a vida. E se cada morte encerra em si mesma o fim de uma História, então cada vida é uma História – cujo fim é, para todos os efeitos, para o que importa, o fim da História. Cada morte, devidamente absorvida, devia ter, por assim dizer, um efeito absoluto; com essa morte (qualquer morte) viria o fim da Vida em maiúsculas. Para os sobreviventes nada restaria, afogados num grau de insuportabilidade para lá das suas qualidades humanas.
Escapamos apenas porque nos distanciamos. E a maior parte escapa, como se sabe. Mas não da irredutibilidade da morte, ainda que lá longe.
Gustafsson, bom entendedor, tenta o impossível: o percurso (vívido, sem concessões, sem álibi) para uma morte que se aproxima a passos largos, tornado digno pela consciência solitária do seu protagonista. Homem tão consciente de si, do seu fracasso congénito, firme perante o mistério do seu estado, que recusará sempre usar como álibi (pois logo que a recebe, decide queimar a carta do hospital com o resultado dos exames), mesmo quando a dado momento é assaltado por uma dor tão forte que, de acordo com o próprio, está para lá da condição humana.
Para o leitor, esta híper-exposição interior é também caminho, caminho para o que podemos apelidar de estado de graça. O que por uma vez não fica mal. Tão próximos da fonte de calor que nos deveríamos queimar de imediato. E no entanto tal não acontece, e nem sequer nos espanta. Enfim, a possibilidade de olhar com clareza para a perda absoluta e sobreviver sem vir a carregar um peso excessivo, conscientes, mas serenos, eis a dádiva de Lars Gustafsson e do seu apicultor moribundo.
Mil milhões de vezes mais proveitoso que qualquer excerto de qualquer texto supostamente deífico. Alguns homens merecem esse crédito, como Gustafsson, ou James Baldwin, ou Primo Levi. Todos, como se diz por aí, demasiado humanos para que possam ser realmente humanos, com a enorme vantagem de nunca ninguém os ter confundido com deuses.
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