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Dizer que Morrissey é dado a momentos de génio é simplesmente inútil, um truísmo. Porém, se é para abrir uma excepção...
Já se esperava: Blackstar é um disco extraordinário. Que não podemos amar nem um pouco mais nem um pouco menos.
Um homem aguarda a morte próxima. Um homem idolatrado (forma de amor dedicada aos temperamentos criativos) por milhões que nada sabem sobre a presença iminente dessa morte tão peculiar. A morte dos semideuses, aqueles que (por determinação, imersos num profundo desejo, tão próximo do sonho de criança) deixámos em devido tempo de ver como homens. Entidades que se haviam libertado da matéria, afinal também corpos mortos e posteriormente cinzas. Não é lógico que assim seja. Não é sequer decente.
Blackstar, nos idos anos setenta do século passado (curiosamente os anos higiénicos em que o soberano Ziggy, persona maior de Bowie, ascendia e caia tão rapidamente que quase não se dava conta dos impérios gerados e destroçados), era o nome usado para Black Hole (Buraco Negro). Estrela outrora magnânima, entretanto afunilada com estrépito na sua própria força. Energia excessiva que esmaga. Onde o que entra já não pode sair e se pinta de negro para o olhar exterior. É a morte em reprodução artística.
Ou seja, um homem a roçar a divindade – expectante, mas determinado – dorido, mas decidido a enfrentar o sofrimento – resolveu cantar o seu final. Onde é que já vimos isto – seja pelo próprio ou por interposta pessoa? Pois, lembramo-nos dos míticos poetas de tempos no limiar da memória. Tempos que assim não se perderam nem se perderão jamais.
Do Bowie restam cinzas. Resisti, prestei-me ao extravagante papel de senhor da alma que subitamente se perdeu e ficou sem rumo, até que o deixei ir. Teve de ser. Não é papel que me fique bem.
A vida prossegue, que é com quem diz: Príncipe morto, Rainha posta. Por um filme, regressei com a necessária firmeza a Laurie Anderson – e Heart of a Dog, o filme, é notável. Filme de proeza técnica / Filme de performance / Criação-tipo de Laurie A. Ainda mais: Síntese de uma vida já em perda pela perda de um animal de estimação, a morte da cadela de Laurie A. (pressuposto lógico porque budista, também perdição para este espectador específico e proveito da criativa em causa).
Laurie A. é e foi muito, mas nunca uma autora de canções em sentido estrito. Durante muito tempo (percebemos agora que durante demasiado tempo) ouvimos os seus álbuns como se assim fosse, entre o entusiasta e o analista, ou seja, construímos castelos sobre matéria não firme, examinámos reflexos sobre reflexos de espelhos côncavos com a minúcia do crítico. O planar no vácuo com sensação de queda que não permite cair para lado nenhum. E o que paira o vácuo sem a possibilidade de queda move-se, caso se mova, sem a sensação de movimento. Por isso pouco lhe importa a velocidade. Porém não é assim para a distância, pelo menos na relação dinâmica com o espaço em volta, pois falamos de vácuo na perspectiva cosmológica.
Ver e escutar são indutores de compreensão, mesmo se da incompreensão, mesmo perante o vazio, mesmo se do que parece estar em falta no espaço imenso, e tendem a ser complementares, de modo que um filme de Laurie A. já se devia adivinhar como necessário para dar plenitude à sua obra. Se tal não sucedeu, então a culpa tem de recair no observador.
Heart of a Dog, filme-álbum-performance, epítome de um processo criativo único, pode ser resumido no seguinte: a percepção de uma área preenchida por ausência.
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