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Pelo menos PP diz o que pensa! Diz o que diz para lá da conveniência partidária ou do espírito da sua época. Não é escravo da direita ou da esquerda ou do centro - Não defende em exclusivo as posições que melhor se adequam a qualquer dessas tendências. Já vi PP mudar de opinião (o que, ensinou-me a História, é a maior prova de inteligência que se conhece!). É um homem que lê, e lê muito; talvez a razão de todas as qualidades anteriores! Entre outras coisas, recordo que: já o vi atacar Obama (chamando-lhe irresponsável) - já o vi defender Obama (chamando-lhe corajoso). O que quer dizer alguma coisa, mesmo que não se consiga definir. Ao que julgo saber, PP gasta demasiado dinheiro em livros e na construção de um espólio cultural fabuloso (o que inclui um espaço físico dedicado à erudição, uma biblioteca, que qualquer país a sério deveria aplaudir e impulsionar), e quase dinheiro nenhum no guarda-roupa – Apenas e tão só, outra qualidade. Quando fala, PP pretende fazer a diferença, o tolo, e não obter sorrisos – No fundo, mais uma qualidade. PP é por natureza avesso ao que não provém da cultura e do intelecto, pelo que jamais ganhou e ganhará uma eleição de cariz popular. Homem duplamente sábio! No entanto, conseguiu que lhe dessem um programa de televisão (um eco: televisãoooo!) onde coloca ao nosso dispor uma série de elementos de saber e instrução que já não se julgavam possíveis nesse meio de comunicação. Num outro programa de televisão onde participa, bem menos interessante, o olhar gasto, contemplativo e meio-gozão que PP coloca ora por cima do ombro esquerdo, ora em frente, ora em eloquentes diagonais intercaladas, é por si só um poema… Uma pena que os interlocutores nesse programa não sejam grande coisa, pois caso assim fosse o poema poderia atingir a grandeza mitológica, como os sublimes poemas clássicos que ele tanto preza – tal como alguns de nós, [em bicos de pés para não deixar fugir a oportunidade] aliás, diga-se por ser verdade.
(eventualmente as não frequentadas pelo Papa F., caso precisemos de inocentes – tanto como de luzes ao fundo do túnel) …
Uma derrota da humanidade implica que a maioria dos seus representantes saiu a perder (no/o que quer que seja). De números, sobre números e para os números, visível e sequiosamente, pois temos de saber quem perdeu, afinal, quantos perderam.
Dos, enfim, sete mil milhões de seres humanos, pode dizer-se, sem grande margem de erro, que pelo menos cinco mil milhões não se identificam com os valores cristãos. E foram estes que se assumiram como derrotados pelos seus intermediários.
Ainda assim, o raciocínio anterior tem uma falha evidente: quando pressupõe (deixa implícito) que as religiões não-cristãs têm uma posição de aceitação relativamente à homossexualidade, o que sabemos não ser de todo o caso. Nesse espaço, já preenchido, temos de tudo, de simples rejeição social a feroz rejeição social, a penas de prisão, a condenações à pena capital. São as religiões bárbaras, diz o devoto cristão. Enfim, de pouco importam para este caso, aceitemos que por falta de algumas condições, mais ou menos evidentes, certos mundos ainda não se podem tocar plenamente sem que daí se derive para lógicas no mínimo perversas.
Assim sendo, choque por choque, restam cristãos e não-cristãos educados na cristandade – e para os cristãos, três hipóteses (a degenerar, quando muito, na simples rejeição social, pois tudo o mais era simplesmente medonho) – claro que os supramencionados não-cristãos escolheram previamente por diferentes razões, e os que escolheram mal já têm disseminada a doença dos bárbaros, ou seja, por exclusão de partes:
Excluída a terceira hipótese, caso opte pela segunda, no fundo, o cristão dá a si própria a hipótese de se salvar, sustentada na representação figurativa, a projecção do Grande Outro como lhe chamou Lacan; tendo finalmente a coragem de abandonar a posição precisa, a necessidade de intervenção directa no real, onde a farsa se torna demasiado óbvia.
Mas parece que não, o deus-católico-cristão (a quem nos dirigimos) insiste em morrer aos poucos pela boca dos seus representantes e crentes. A ironia é que os supostos interessados são cada vez mais, e ao mesmo tempo, os executores e as vítimas de tão pesada pena. Outros tomarão o seu lugar, e tal não tem nada de bom, mesmo se ainda se apelidarem de cristãos.
Um livro! O LIVRO!
Cinquenta e quatro anos depois. Não meus. Não de ninguém da minha geração. Sem hesitação: o mais inabitual romance saído do, por tendência, mais inabitual dos géneros, a ficção-científica. Incrível proeza.
Como todos os contos, começa como tem de começar, Era uma vez…, seguido de uma condição (de pertença) e de um nome. Um marciano – Valentine Michael Smith. Para os seus amigos terrestres: simplesmente Mike. Mas antes de Mike, houve a primeira expedição tripulada a Marte. Correu mal, muito mal, todos mortos pouco tempo depois da aterragem. Segunda expedição tripulada a Marte, vinte e cinco anos depois; afinal não morreram todos na expedição anterior. Um bebé foi gerado durante essa viagem, entretanto nascido e, enfim, oferecido pelas circunstâncias à superfície marciana. Delicioso bastardo. Sem humanos por perto, restam os marcianos para se assegurarem da sua educação e crescimento. O que fizeram sem esmero, mas apenas por que para essa espécie distante tal actuação é, pela sua natureza, escusada. Vivem de outro modo, para outros quereres (que são, num primeiro olhar, tudo menos afectos). Para os padrões terrestres detêm poderes inacreditáveis (por exemplo: com um pequeno contacto com a ponta dos dedos conseguem projectar cada célula do organismo que tocam 90 graus em qualquer direcção – para uma quinta dimensão tão celestial quanto o possam imaginar) … Educado, portanto, por marcianos, logo bastardo duas vezes, que fruitiva criação (outras tantas vezes). Conduzido para a Terra, o seu percurso resume-se facilmente: primeiro, espécime protegido, depois semideus-protector amado e odiado nos respectivos extremos, e por fim mártir. Tanto de entrada para um tão curto resumo. É a vida. A vida de Mike.
Valentine Michael Smith: A trivialidade do nome Smith, a majestade do Arcanjo Miguel, líder celeste de tribo na eterna luta contra o Mal, e de novo o trivial, diferente, do São Valentim dos enamorados.
Dos enamorados, não do sexo! … Pois será pelo sexo que se nos apresentará a conduta de Mike … Como inocente que é dos rituais terrestres, não pode nem poderá entender a denegação do mais antigo e cristalino desses rituais, o embate de corpos; ritual onde a obediência à programação genética não choca, não tem de chocar, com a persecução de uma individualidade (não isenta de sacrifício corpóreo, é certo); é pelo sexo que o Humano se alicerça, se estrutura, é o seu ponto de crescimento, é Ser que é corpo antes de ser alma, por muito que o queiram ao contrário; Mike, porque pode o que poucos podem, começar do zero-corpo aos vinte anos, pois os marcianos deram-lhe alma antes que ele se percebesse corpo, abre caminho independentemente dos obstáculos, que não percebe, não vê surgir.
E daí a estranha – e, no parecer, contraditória – essência da verdadeira emancipação de acordo com VMS: percurso que parte da inocência, e em que o sujeito algures durante o caminho, voluntariamente, torna o poder adquirido em sacrifício, ou seja, percurso da inocência para a extrema inocência.
O grande livro de ficção-científica (estávamos então nos anos 60) é também o livro sobre a libertação sexual. E fá-lo sublimemente, sem cair na explicitude linguística ou descritiva, evitando assim o ghetto de género (erótico ou pornográfico). O que se seguiu mostra o quão singulares foram esses tempos, agora perdidos; atirados, também eles, 90 graus em todas as direcções por uma doença da qual se aproveitou uma moral. Deus recuperou o seu lugar na sociedade pelas piores razões.
Heinlein sempre foi dado a riscos, e com Stranger… arriscou tudo; virou contra si religiosos, feministas, plutocratas, objectivistas, sentimentalistas, marxistas, secularistas; todos de igual modo. Por outro lado, o tempo deu-lhe o culto e os epítetos a essa condição associados – Sinfonia de contornos bíblicos. Épico modelar. Impulsionador de condutas.
Menos analistas, dizemos o seguinte: se algo caracteriza o livro é a interjeição Ups!; cada momento de vida e de morte é como um solavanco, i.e., vivemo-lo os leitores, vivem-no as personagens, como se estivéssemos/estivessem sempre na sequência dessa expressão.
Introduziu ainda, pequeno-grande bónus, um novo verbo nas várias línguas (original e respectivas traduções), to grok – grocar, que se pode definir nestes termos: entender tão profundamente, ao ponto do observador se incorporar no observado.
Groquemos juntos, de uma vez! Não que haja outra forma...
Responder ao desafio lançado na obscuridade da noite fria, interminável de neblina. A noite contínua que foi o Inverno mágico de 2013. O desafio, circular, de conteúdo apenas ligeiramente oscilante. A voz, como sempre, rouca. O amigo de longa data que restava...de mãos nos bolsos, encostado à penúltima arcada.
Uma leitura perdida no tempo? Como: Irrecuperável sublimidade…? – Memória amplificada: nunca antes começara com um eco, ou fora seguido de uma enxurrada (de resto inavegável, como se em choque com o modelo escolhido; prestes a ser escolhido ou já escolhido?):
Sim, claro, (*) – Começa deste modo: “Todas as sociedades nas quais imperam as modernas condições de produção apenas se podem declarar como uma imensa acumulação de espectáculos. Tudo o que era directamente vivido esvai-se na obscuridade da representação.”
Não há outro livro que te pudesse apresentar com um tão longo excerto registado ao detalhe…
Texto irreprimido, de âmbito cósmico, modulação robótica, método contraditório – o que todos os grandes escritos devem ambicionar, o para lá de si próprios. Terminado em 1967, como um dos antecedentes lógicos do maio de 68. Espera um momento! Para agradar às vozes digitalizadas da modernidade, a pergunta inútil: Ainda vale a pena? Resposta obrigatoriamente pronta: Claro!
Um livro, hoje, igualmente desprezado pelo cinismo de uma direita a viver os seus melhores tempos (porque mais propícios) e por uma certa esquerda que nunca se reviu em temáticas existencialistas próprias de quem considera a individualidade essência (e não norma ou impulso malsão), por princípio é credor de tudo quanto queira e possa, ainda que poucos devedores lhe restem, demasiado ocupados que estão todos os outros.
O que era uma descarga de porvir probabilisticamente forte tornou-se imperativo presente e exclusivo futuro (com o devido cumprimento aos objectivistas, actualmente travestidos de fukuyamistas de serviço e ao serviço!), pelo que também existe um risco: de o lermos como parte do espectáculo que denunciou. Ou pior, lê-lo como acto de comodismo último. Risco que para o seu autor se pode ter tornado demasiada carga. Numa certa noite de outono cometeu suicídio com arma de fogo. E não, não disparou contra a cabeça; a bala, única, dirigiu-a ao coração. Morte imediata de um dos derradeiros revolucionários. De e pela palavra, para a morte voluntária. O destino inevitável. Alguns textos não deixam outra saída.
Calei-me. Tive receio de ter ido longe demais no tom, na inflexão. Discurso em hipérbole, excitado pela oportunidade dada. No fundo, sensação de estranheza; não era o tipo de esparrela em que tinha por hábito cair, pensava eu, mas nessa época era ainda mais inocente. Sobretudo na situação em que me encontrava, com o meu amigo à minha frente.
Ele franziu o nariz, incomodado pelo frio, e depois disse-me que não esperava tal escolha. Por alguma razão, talvez alguma conversa anterior, quem sabe, metera-se-lhe na cabeça que eu iria escolher um qualquer escrito de Céline, e ordenara o pensamento para o efeito. Tinha uma réplica preparada, que de nada já lhe servia. Disse então, como quem abre uma porta para o infinito: Remeto-me ao silêncio, mas com um sorriso nos lábios!
Sem o merecer, tinha finalmente a sua aprovação.
- 02.05.2015 -
[Um prelúdio. Impressões rápidas, não raras vezes orbiculares, consoante a disposição do momento e consequentes mudanças de rumo, acerca de uma exposição fotográfica. Os filmes e livros adquiridos que se lhe seguiram. E ainda sobre uma doce e (naquele instante) inesperada representação teatral.]
O dia começa chuvoso, por acaso é dia da Mãe. Duas forças na mesma dimensão espacial; e contudo dissemelhante potencial de atracção e repulsão, o que, acredito, torna o impacto irresistível. Faço-lhes, portanto, a vontade… Quase sempre, pois da chuva fujo quando as circunstâncias o permitem. Hoje não é o caso.
Penso no seguinte, para destruir um outro pensamento pela raiz: ‘Repito-me, muito, demasiado. É como se vivesse num circuito fechado – Sempre foi o meu mal.’
Sinto-me privilegiado e, ao mesmo tempo, pouco digno. No entanto, como estou longe, penso no que quero e como quero. Um luxo que, desde que devidamente disciplinado (por norma, após cinco minutos de modorra existencial), tenho por hábito aproveitar.
… Ninguém na porta de entrada. Um tipo de aspecto jovem à espera que chegue gente. Chegamos nós e o rapaz sorri. Sorrimos de volta, mas por razões distintas: estamos expectantes! Não nos apetece fingir indiferença – não somos nem nunca fomos pessoas desse género.
Compro o caderno que alimentarei com o anterior e com as notas da exposição (e/ou outras). Primeira batota: reflicto antes de escrever e sobre o que vou escrever como introdução. Nesse momento, estou definitivamente entregue a mim próprio. Em breve, o acesso ao escape essencial através das imagens. Os que escrevem, todos ou praticamente todos, é dessa forma que constroem os seus mundos: utilizando escapes. Especialmente quando estão durante demasiado tempo entregues a si próprios.
… Sem mais perdas de tempo:
Um livro cujo preço é proporcional ao tamanho – ambos fora de alcance.
Tribo Kurowai, Papua Ocidental, Indonésia. Longe de Jacarta, a única Indonésia que nos é oferecida com regularidade. Constroem as habitações geralmente entre 6 e 25 metros acima do solo. O que tanto temem ao nível terreno? Ou não é temor e é, antes, um desejo tremendo, ao ponto de se tornar insuportável caso não cumprido, de estar ao nível dos seus deuses (presumindo que, tal como 98,76% da humanidade, não podem deixar de os ter)?
Um dos membros da tribo tem nas pernas lacerações impressionantes, como se esculpidas na pele. E não, não é horrível, é integração na natureza. Integração na forma possível.
Tal como as focas, que observo com cuidado; estão encastradas na rocha. Amestradas figuras para o fotógrafo (sempre perscrutador). Nas Galápagos…
Bocas, bocas inacreditavelmente expostas, abertas para lá das possibilidades – simbólicas, pois os seus lábios deformados circundam alegorias desenhadas num material que não consigo identificar, mas faz recordar o sílex de tempos imemoriais (refiro-me às aulas de História do sétimo grau, ano domini: 1987). O material é, evidentemente, circular, semelhante a um prato.
Nevoeiros e mais nevoeiros; uns africanos, outros no extremo-sul do planeta.
Casas lá em cima, no topo das árvores, como ninhos. Dos deuses nem sinal.
Grupos: Pessoas misturadas com animais. Parecem um e não muitos. Não se distinguem por espécie.
Os olhares são humanos – todos eles. E também próximos, muito próximos. Estão a olhar para aqui. Hora de ir embora.
Mulheres muito belas e nada sexuais.
Embondeiros ou árvores baobá, em Madagáscar, formam ‘ilhas cogumelo’. E um ‘órgão de tubos’, basáltico, também em Madagáscar, arquipélago de Mitsio.
Tempestade ao longe! Não sei onde, não estou perto do quadro, mas parece-me, logo a esse olhar fugaz, uma imagem extraordinária. Quando me aproximo, e o olhar se estende no tempo, reparo que é também sôfrega…
Olhos de Lémure: sempre abertos, enormemente; nossos e também inteligentes. E tristes, pelo que subitamente reconhecíveis.
Ainda em Madagáscar: Dizem-me que observo morcegos, mas só consigo pensar em raposas voadoras…
Árvore que tanto forçou, que obrigou que a rocha se reconstruísse em volta dos seus ramos.
Bolbo cerebrado e medonho! Não fálico, apesar de um olhar primário ter a necessidade de o ver desse modo.
Caverna Catedral (???)
Mais embondeiros; a perder de vista. Viver em igualdade de circunstâncias…
Bancos de areia: Jogo de crianças. Plasticina…
Ainda a Caverna Catedral. Mostram-me, através de indicações precisas (é para isso que servem os amigos), que não é possível discernir o interior do exterior... Talvez pelos tons – Penso mas não digo.
Cauda de baleia a ocupar todo o mundo disponível! Na verdade, mundo total. Como as asas da gaivota na imagem que vem logo após.
A foca (?) resolveu zangar-se… Leio, e afinal é um leão-marinho. Erro honesto (porque embevecido pela memória e pela força da imagem).
Há por aqui uma nuvem que parece imaculada… Estranhei e não devia estranhar! Agora, nada a fazer…
Ilha Siberut, Indonésia; construção de utensílios no vazio…
Nova-Guiné: os Homens-Lama.
Olhar extraterrestre! Homens-Huli; ainda na Nova Guiné.
Mudança abrupta de registo: glaciares polarizados. Dizem-me que não é assim.
Insisto: agora rios polarizados! Efeito de lava… Não obtenho resposta; está suficientemente afastado…
De volta aos brancos de gelo. Sinto-me em casa (!?)
Alaska: o fogo que escorre; e não é fogo, apenas parece… Vejo o que não existe?
Um rosto de vulcão! Repito: um rosto de vulcão! Quem, quem, quem (???): Jabba, the Hutt…
Evos esmagados na rocha, com as nuvens de tempestade à espreita.
E se fosse possível prever através de um modelo matemático o efeito estético da morte de uma árvore? Nós e ramos envelhecidos. Contorções… Seria como o que tenho à minha frente.
Queria ver formas nas nuvens. Ao meu lado há quem facilmente as descubra. Eu não…apenas as vejo na terra enrugada.
Nenats (esquimós) da Sibéria (?!) O nome é extraordinário… Confesso que não sabia da existência de esquimós na Rússia. Pela primeira vez sorrio abertamente. Continuo a sentir fascínio pela descoberta…O miúdo preso no interior.
Gelo rasgado? Não, são formas humanas e animais que não reconheço em debandada…
Pantanal: A onça-pintada de olho firme na nossa direcção – Memória de uma pantera que antes foi a Nastassja Kinski.
Fronteira Brasil-Venezuela: montanhas do Imeri. Pico da Neblina, ponto mais elevado do Brasil (2.994 metros).
Angel Falls, Venezuela: 979 metros em queda-livre…
Alto Xingu, Mato-Grosso, Lagoa Piyulga: sortilégio.
Os banhos dos Zo’é: fanáticos da limpeza. Brasil.
Zo’é, também caçadores de enorme plasticidade. Não sei se eficientes.
Uma mulher da tribo Zo’é: pé arrastado, o negro dos pelos púbicos, mas não espesso, não conquistador; suave, moderno, lúbrico…
Não vejo chuva numa certa imagem, e sinto-lhe a falta.
As águas dos braços do rio como um espelho quebrado! As 350 ilhas florestais do rio Negro, com as nuvens ao alto. 80 Km a nordeste de Manaus.
O mais devaneante dos icebergues – Metade mágico, metade como se feito pela mão do homem (é claro que não; mas, por outro lado, como não?). Castelo de um feiticeiro perdido…
Horas passaram. Olho com atenção para a série de postais que comprei antes de entrar na exposição (e por esquecimento não referi antes). O que me predispus a sentir retorna, mas como se distendido. Se de música se tratasse, por exemplo um disco escutado pela segunda vez, com maior clareza mas com o volume mais baixo.
Dentro e fora…
Um homem praticamente nu sobe a uma árvore. A árvore está tombada, formando uma diagonal. O homem fixo no tronco, sensivelmente a meio deste. Juntos, homem e árvore, formam o primeiro plano. Para lá desse imediato em destaque não se consegue ver nada, todo o espaço coberto por fumo ou névoa. Se é fumo parece névoa. Se é névoa, de tão densa, ou sob a sua alçada não se consegue respirar ou, então, se ganha como que uma nova pele. Partindo do princípio que é névoa, rapidamente me apercebo de quão absurda é a primeira hipótese, claro que se pode respirar, pelo que quero experimentar a nova pele, uma pele com textura do algodão doce…
Entretanto esqueci o homem, pendurado na árvore. Não se moveu. Para onde haveria de ir?
Uma cabeça de leão entre plantas que vejo como dentes-de-leão. Talvez exagere na semelhança. E por razões meramente estilísticas. Deplorável!
Agora sim, com toda a certeza, dentes-de-leão; empurram a água do lago, e é como se a sua força conseguisse enrugar a linha de água…
Dois homens de pé numa canoa atravessam o lago (quase de certeza outro lago – não me aproximo o suficiente). Não consigo perceber se é noite, e vejo o luar, ou se acontece durante o dia, e vejo um sol frágil e em breve caído por trás das nuvens. A imagem é assim tão misteriosa.
Um animal com dois cornos enormes, tremendos, entortados, ambos a apontar na mesma direcção; estranha forma tão absurdamente precisa. Ao lado do animal, um homem bem menos imponente. Outros homens estão mais afastados. Animal e homens com aspecto gélido. Os homens: respeitáveis. Talvez os inveje.
Mais bocas enormes, redondas e impensáveis. Sim, definitivamente simbólicas e tudo menos belas. Não em vida; e é assim que os observo, aos homens das bocas inimagináveis: como vivos… As bocas são como os olhos, se não forem belas, é como se o quadro do rosto não pudesse subsistir e perdesse todo o sentido. Agora que já não estou tão impressionado posso finalmente perceber (e aceitar) o que sinto no que vejo.
Raios de sol sobre a floresta. As copas das árvores em forma de cogumelos parecem representações artísticas de explosões de estrelas, ou então deflagrações de napalm…
Renas arrastam um trenó – Como deve ser dura a vida quando se está próximo dos pontos mais remotos – A paisagem é branca e bela, mas o que prevalece é a ideia associada à dureza da vida.
Um elefante a patear na direcção do olhar-câmara, e é como se o mundo estremecesse! Quando, segundos após o primeiro olhar, olhar traiçoeiro, interiorizamos a fixidez da imagem, é como quando ouvimos o Mysteries of Love no final do Blue Velvet. Uma suspensão da violência, que aguarda uma nova oportunidade. Enquanto não volta, podemos observar a beleza do abismo sem risco de queda.
Já os pinguins parecem gostar dos extremos esbranquiçados do planeta. Ou então não tiveram alternativa.
Um bloco de gelo (ou, julgado pela aparência, um floco de neve gigantesco) ameaça abater sobre os pinguins. Estes, descontraídos como só os pinguins conseguem estar, nada notam de anormal.
Homens com olhares de loucos usam capas pontiagudas para proteger os órgãos sexuais, o que os faz parecer, para além de loucos, temíveis!
Observo longo tempo. Pergunto para que servem tais artefactos. Os homens agarram essas capas como se fossem punhais.
Habitam na Papua Ocidental. Temo pelas suas mulheres. Uma dessas mulheres observa os homens à distância. No que é dado a ver, não expressa qualquer temor, e não usa qualquer protecção suplementar. Talvez tema pelo género errado. Agora já não vejo os homens como temíveis, apenas como tolos. Nem enquanto caçadores dou por eles um tostão furado. A mulher continua a observar, lá do fundo. Não se afirma nem disso tem necessidade. Por fim compreendo e posso prosseguir.
Uma tempestade no canto da imagem. Curiosamente, o rio que corre em baixo parece-me de lava –> curiosamente, por quase todos os rios mostrados na exposição me parecerem de lava.
Vejo uma divisão do motivo da imagem exactamente a meio. Um reflexo na água. Em tempos ensinaram-me que não se devia fazer assim. Quem sabe, pode, pode quase sempre e pode quase tudo. Exagero, pois claro… Talvez o motivo da imagem não seja o reflexo na água…
Coloco mentalmente uma foto com uma pata escamada de iguana ao lado de uma outra com o rosto belo e sério de uma esquimó. Complementam-se na perfeição no olho-da-mente. Só pode querer dizer que mantenho intacto o meu olhar de cinema…
Faço por terminar no icebergue que antes referi como místico e com um impossível/possível toque humano no seu desenho e construção – Estranha fortaleza de uma qualquer rainha do gelo. Tiro de lá o feiticeiro de antes…
Cá fora. Promessa de voltar. Uma fila com mais de uma centena de pessoas… Não devo voltar. Não fumo mas apetece-me; deixei, e deixei para sempre, ainda que muitas vezes me apeteça. Nada a fazer. Rigor absoluto...
Vou comprar livros e filmes sob influência. Só então…
Filmes:
- Visitors (G. Reggio)
- Snow Piercer (Bong Joon Ho)
- As Bestas do Sul Selvagem (Benh Zeitlin)
- O Sorriso do Assassino (Henry Verneuil)
- Pietá (Kim Ki Duk)
Livros:
- Viagem Sentimental (L. Sterne)
- O Sobrinho de Rameau (Diderot)
Missão cumprida. Os filmes comprados reflectem melhor o estado de influência do que os livros. Nem sempre é assim…
Volto para casa. Penso na pequenita. Antes de partir liguei a avisar e falei com ela. Ao telefone, a seu pedido, fiz de ovelha, de porco, de gato e de sapo. De ovelha mais vezes que de porco, e de porco mais vezes que de gato e de sapo.
NATURAL BORN KILLERS (1994), Oliver Stone
Que saudades de um bom tumulto. Barulhento, muito barulhento, e sem vítimas ensanguentadas a lamentar. Obviamente, o dito anterior remete para o que ocorreu no lado de cá da luz do ecrã e do oceano. Houve algumas vítimas, claro, mas todas no lado de lá (esse lugar, real e imaginário por igual, onde não poucos de entre todos os estrondos que se ouvem vêm de carregadores de armas de fogo, deslizam por canos estreitos, longos ou cerrados, conforme o gosto de cada um, e tendem a alojar-se na carne tenra de alguns incautos a cruzarem a estrada errada no momento errado). Se um inglês desesperado facilmente trocaria o reino por um cavalo, um americano em idêntica condição culminaria num êxtase com uma carabina que pudesse apoiar na cintura, a reconquista do reino viria depois, através do cinema.
Por cá, como dito anteriormente, nada de sangue, apenas ruído. E entretanto passaram vinte anos. Pouco resta desses tempos, de grupos impreparados em lados opostos de uma barricada artificial criada no momento. De um lado Natural Born Killers; no outro, Pulp Fiction. Oliver Stone, o áspero paranóico, versus Quentin Tarantino, o messias cool. Com as particularidades de NBK ser baseado numa história original de Tarantino e de este então, como de resto ainda hoje, negar alguma vez ter visto o filme, tais as dores de estômago. Hiperactividade gástrica em quem menos seria de esperar.
As palavras amargas não se ficaram pela arqui-rivalidade – e afinal Tarantino era juiz em causa própria, sendo que da história original pouco restava no filme de Stone –, nem se perderam no tempo. Um exemplo relativamente recente: L.M. Oliveira no jornal Público, desorientador, nem por isso inesperado, refere-se a NBK como um filme que “continua horrível”, mas com ”um sentido crítico premonitório, espécie de projecção de uma “selvajaria” por vir: como se dissesse “vejam, meus amigos, o mau gosto do futuro”; afinal, mesmo horrível durante 20 anos, parece ter, muito antes destes terem passado com a rapidez de um fogo-fátuo, atingido o seu objectivo. Ou então aqueles que se escandalizaram e escandalizam com um objecto que se estabelece como uma crítica última à violência - e afinal a celebra…
Artigo genuíno, opiniões sadias, tudo certo, (suspiro…), mas quem é o homem por trás do estrondo. Caso estranho e pouco visto em Hollywood, pois inclui uma curva pronunciada a meio do caminho. Vejamos: Combateu no Vietname, consumiu as substâncias devidas, quis ser famoso, escreveu argumentos de linha dura, bem aconchegados à direita, ganhou um Óscar nessa categoria com um dos filmes mais racistas que a memória guarda (Midnight Express, em 78), escreveu um dos filmes emblemáticos da era-Reagan (Scarface, 82), depois voltou, já como realizador, ao Vietname e sucedâneos pelo lado esquerdo de uma muito própria via-sacra (Platoon e Salvador, ambos de 86), tornando-se famoso e multipremiado, e também notório contestatário. 1986, é o seu annus mirabillis. O separar das águas. O que veio a seguir, enfim, é História… Isto diz-nos o suficiente sobre o homem? Não, na verdade, não!
Stone é um homem inevitavelmente só. As escolhas foram contrárias ao sentido dos tempos, e por isso não há movimento em que se possa apoiar.
[Por gozo, ou generosidade (mas isso seria crueldade desnecessária!), poderíamos inventar-lhe um, o Post-Hollywood (pergunta: mas já não existe? - resposta pronta: claro que não! Há muito tempo que não.), do qual Stone seria o único legítimo representante.]
Por outro lado, esse isolamento deu-lhe uma possibilidade imensa de libertação, que aproveitou como poucos. Não é um homem amargurado. Criador de palácios de sonhos e pesadelos (separemos por uma vez o que é de separar) válidos para uma América que, quer queiramos quer não, já reside em todos nós e que Stone regularmente mascara de verdade alternativa, confusão que tem tanto de inadmissível como de deliciosa. Uma máscara para a verdade pode ter esse efeito dúplice, tanto quanto uma verdade pode ser alternativa. Recordemos filmes como JFK (1991) ou o documentário The Untold History of USA (2012), filmes que nasceram para ser odiados, em rigor desesperam pelo ódio do público, com o propósito de assim se tornarem ineludíveis. Como uma comichão que primeiro fingimos não sentir e depois fingimos não nos incomodar. E também filmes imperdoáveis, por não serem, tal como o homem, sustentados na amargura. E ainda por cima falam-nos olhos nos olhos.
Homens sós, ou se afastam ou atiram. Stone escolheu atirar, contudo aparentemente sem se preocupar em ser certeiro. Os mecanismos de análise (de qualquer análise) insistem numa necessidade de “verdade”, bastas vezes eliminando o conceito imediatamente anterior, o de construção. Agir em conformidade é, entre outras coisas, o encolher de ombros para com a objectividade da procura desde que garantido o espírito dos tempos. Por outras palavras, perdoa-se a construção da verdade, perdoa-se o encolher de ombros, mas jamais se concede indulto a quem joga / goza abertamente com a segurança da observação.
Oliver Stone, que sabe o que faz (não há como pensar de outra forma), como autor que se entrega, abertamente e com um sorriso nos lábios, ao sacrifício? Sim, também.
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Natural Born Killers - Mickey & Mallory, pelos caminhos que já foram do velho Oeste, a matar indiscriminadamente. Matam porque não tiveram apoio familiar, matam pelos traumas que não conseguiram superar, matam pelas circunstâncias, matam para alimentar a lenda que à volta deles foi construída, enfim, diz também o título, matam por natureza. Outros, aqueles que os que os perseguem, que deles se alimentam, ou matam ou desejam matar. Outros ainda, os fãs, também comedores de almas, mas de tipo diferente, gostam que eles matem, pois assim também matam e não precisam de sujar as mãos. Too much TV!, pode ler-se a dado momento, uma das poucas ocasiões que se pretende (ou assim parece) de lucidez. Ocasião que, no entanto, também degenera em morte.
Stone dá-nos imagem sobre imagem, sobreimposição de tipos e géneros e velocidades em montagem vertical (modelo desse modo definido pelo próprio Stone, e que consiste numa simultaneidade entre os níveis de mostragem). Vemos o que vemos, vemos o que os personagens realmente são e sentem, e ainda vemos (quase tudo) o que o cinema permite que seja visto enquanto mecanismo / meio de multíplices possibilidades. Os dois primeiros níveis estão evidentemente contidos no último, mas mantidos à distância, com vida própria; tese insensata, a de Stone. Exemplo: Mickey bebe uma chávena de café, lê uma notícia de jornal sobre os seus crimes (sequência a cores) – Corte – Mickey a construir uma fúria intensa (sequência a preto-e-branco) – Corte abrupto – Insert (a cores) de Mickey coberto de sangue – Corte – O verde cintilante da tarte de lima, que Mickey corta com o garfo e mete na boca – Corte – Condiz com o verde da Jukebox, de onde uma canção começa a ressoar. Simultaneidade entre o mundo exterior, o mundo interior e o mundo do cinema; o corpo, a alma e o belo (estético/artístico/metafórico dentro dos parâmetros da linguagem fílmica).
A estratégia é o que, livremente, podemos apelidar de interpenetração agressiva como caminho inevitável para a overdose. Aproximação como se de um nível superior e totalmente abrangente (enquanto olhar); olhar da quinta-dimensão. Se recordarmos uma das sessões anteriores, The Face of Another (H. Teshigahara), algo de muito semelhante foi dito sobre o propósito do cinema de Teshigahara: sobredosagem de técnica como forma de atingir um olhar simultaneamente interior e exterior; só que Stone vai ainda mais longe, não deixa implícito, mostra-nos tudo.
Nestas coisas de brincar com absolutos, uns quantos tendem a ficar amedrontados, outros tantos especialmente emotivos e alguns ainda incomodados pela exposição às fraquezas da objectividade, é obviamente a todos esses que se dirige um filme como NBK.
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