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Provocação: certos filmes, aqueles que inevitavelmente, cedo ou tarde, acabaremos por olhar como os melhores, constroem-se assentes numa certa (porque incerta) ideia de caos por circunscrever ou, enfim, pelo menos por definir. Desígnio não forçosamente rude, e sempre determinado pelas dores de crescimento. As décadas que melhor o perceberam foram as de sessenta e setenta. E os cinemas que melhor o trataram foram o francês e o americano. Fenómeno (e assim a provocação transforma-se em afronta!) que bebeu do cinema clássico americano e em seguida ajustou onde tinha de ajustar – primeiro, Europa adentro, no que ficou conhecido como nouvelle vague francesa (quanto a ideais e altivez, a França sempre se confundiu com a Europa), depois na New Hollywood dos sessenta-setenta, fecho de ciclo, regresso a casa de ambíguas emoções.
Bem vistas as coisas, teria de andar por essas latitudes – duas guerras notavelmente perdidas e duas ilusões de grandeza em muito semelhantes. As guerras, obviamente Argélia e Vietname, ambas perdidas logo que começaram. A um falta-lhe o tamanho do outro, ao outro um senso de pequenez que lhe permita situar o olhar no diferente. Ao segundo, principalmente, far-lhe-ia bem perder uma guerra, e assim sucedeu. Claro que nem todos têm a mesma opinião… Alguns rostos, com as bocas meio deslocadas, ainda parecem perguntar: como é que isto nos aconteceu?
Num outro filme, título: Watchmen (2009), fascinante mas menor que aquele que motiva este escrito e/ou qualquer um dos que nele venham a ser referidos daqui para a frente, filme passado num 1985 alternativo em que os EUA, apinhados de heróis/anti-heróis mascarados, ainda que com apenas um a deter superpoderes, devido a esse ganharam a guerra do Vietname – EUA que, por acaso, se encontravam no quinto mandato de Nixon (belo futuro, de facto! Ou será passado? Alguma coisa é ou foi ou será!). Um dos personagens, um vingador mascarado em lágrimas (sim, em lágrimas), dizia algo como: ‘perder aquela guerra podia ter-nos destruído, como país quer dizer’.
Estaria, estava certamente, a referir-se à América que resulta dos filmes da New Hollywood. Havia coisas a ganhar, no entanto. A consciência da perda de uns foi o regozijo do cinéfilo – Quem insinuou que o mundo é justo? Neste caso foi, para os que viram e para os que permaneceram vivos.
Fixemos então o olhar nessa distinta conjunção, quase sempre aos pares e por extenso: Easy Rider e The Last Movie (Dennis Hopper), Midnight Cowboy (John Schlesinger), M*A*S*H e Nashville (Robert Altman), Harold & Maude e The Last Detail (Hal Ashby), Five Easy Pieces e The King of Marvin Gardens (Bob Rafelson), The Conversation e Apocalypse Now (F. F. Copolla), Taxi Driver e New York, New York (Martin Scorsese), Sugarland Express e 1941 (Steven Spielberg), Big Wednesday (John Millius), Two-Lane, Blacktop e Cockfighter (Monte Hellman), The French Connection e Sorcerer (William Friedkin), Taking Off e One Flew Over the Cuckoo’s Nest (Milos Forman), Phantom of Paradise e The Fury (Brian de Palma), The Wild Bunch e Bring Me the Head of Alfredo Garcia (Sam Peckinpah), Bonnie and Clyde e The Missouri Breaks (Arthur Penn), Catch 22, Who’s Afraid of Virginia Wolf e Carnal Knowledge (Mike Nichols), The Deer Hunter e Heaven’s Gate (Michael Cimino). Lista necessária e suficiente.
Sublime e imberbe caos, multigénero, a olhar para trás e para a frente - por vezes em simultâneo, também como uma necessidade, ora existencial ora funcional, este último por gozo e, em igual parte, desespero existencial. Parte do primeiro, portanto.
Algures, a ([imagem] / [concepção]) desordem reverte numa ambição que não pode ser cumprida; pode ser quando muito imperfeitamente simulada. É justamente o caso de The Last Detail.
A premissa é simples: Bad-Ass Buddusky (Jack Nicholson) e Mule Mulhal (Otis Young), marujos em terra firme, são chamados a uma missão, escoltar um delinquente à prisão. Ao detido, jovem, quase criança, um tal de Meadows (Randy Quaid), esperam-lhe oito anos pela tentativa de roubo de … 40 dólares! Segundo parece, a mulher do Almirante, muito dada a caridades, ficou ofendida com a transgressão e pressionou até à quase pena capital. É mais do que isso. Pobre Meadows. De ladrão não tem muito, nem sequer os 40 dólares. Mera tentativa, afinal! É mais do que Buddusky (diz-se Badaski) consegue aguentar. Sim, vão levar o jovenzinho à prisão, mas antes umas valentes noitadas e um pouco da vida que o jovem, ao que parece, nunca conheceu. Fica implícita a libertação do mesmo, caso tudo o resto falhe.
Bad-Ass e Mule, dois tipos duros; quando o recruta convoca Buddusky para se dirigir rapidamente ao mestre-de-armas, a resposta vem conforme: “Tell MAA to go fuck himself!”. “It’s your ass!”, lembra-lhe o recruta, e ele lá se apresenta. A necessidade é maior que a vontade. Só que em breve vão andar sozinhos, e à vontade pode juntar-se a oportunidade. Será assim?
As pistas são desde logo dadas pelos olhares distanciados por níveis: se quisermos, aceitação em Mulhal, renúncia em Meadows e desassossego em Buddusky. Vontades diferentes apenas podem deixar como rasto os vestígios básicos de emancipação. Uma bebedeira, uma ida ao bordel, uma libertação espiritual e uma festa ao ar livre. Elementos clássicos que Ashby reduz ao mínimo, um caminho afunilado com a função óbvia do esmagamento, da compressão.
A cena da bebedeira é, nesse sentido, absolutamente notável pela quebra de expectativas que representa para o espectador. Num quarto de hotel em que mal caberia um, estão três. Os diálogos são genuinamente embriagados, isto é, com perspectivas grandiosas mas vazios. E termina com cada um para seu lado, o prisioneiro a dormir na melhor cama disponível, e os vigias de rostos perdidos à procura de um espaço para o sono, que não existe. Nada aconteceu e a compressão do nada é a mais agónica das forças. Especialmente para aqueles que a contemplam (e claro que não nos referimos aos personagens).
Se, como antes se disse, Mulhal aceita (“NAVY was the best thing that ever happened to me!”) e Meadows renuncia (“Who do I get mad at? Not at somebody who’s doing their job.”), Buddusky é pois o motor que resta. Motor dado a explosões súbitas. Ouvimo-lo dizer: “One time... when I was... Oh Jesus Christ...! A friend of mine was looking for me. And I was up on top of his car and I pissed on his head... Just being crazy, you know what I mean?” Alguém com um desmesurado desejo de disparar. Alguém que quer e não consegue mais do que querer. Alguém que começa com verborreica relutância a cumprir uma ordem, e termina com relutância silente a cumprir uma outra ordem – esta com bem maiores consequências.
Por isso, e esticado como persona, Nicholson-Buddusky apenas seria resgatado dois anos depois com o seu (e não menos nosso) Randle Patrick MacMurphy em One Flew Over the Cuckoo’s Nest. O desejo de loucura já é suficiente sanidade. O caminho é outro, potencialmente destruidor e pouco dado a eufemismos disfarçados de indecências.
Hashby fez mais quatro filmes de grande qualidade, perdeu-se entre excessos de álcool e drogas e finalmente reencontrou-se para morrer de cancro relativamente jovem, aos 59 anos. Como o bom malandro que era nunca resistiu a um anticlímax. Até ao fim.
RAGING BULL / 1980 - Martin Scorsese
Se tivermos a audácia (acto nem por isso muito audaz) de elevar o desporto a arte, e por consequência o desportista ao nível de deus menor, confrontamo-nos imediatamente com a figuração de ideais. Um desses ideais é o homem (deus menor autoconsagrado) contra o mundo. Imaginário que se escora na solidão. Nesses termos, duas representações típicas distinguem-se de todas as outras, ambas notavelmente e bastas vezes reproduzidas: o guarda-redes perante o campo de futebol e o pugilista no canto do ringue. Último pilar, para além deles apenas resta o inferno da queda, sendo que com uma diferença: um sustenta as muralhas e o outro sustenta-se a si próprio. Ou seja, um sustenta o bloco e, caso falhe, faz com que se perca o império (mas perdido o império tem quem o acuse e quem o ampare na queda; tem hipótese, mesmo se desequilibrada (mesmo se muito desequilibrada) de partilha – derrubadas as muralhas, inevitavelmente a derrota é de todo o poderio, anteriormente representado pelo império); o outro, caído, não tem redenção, a mão que o tentasse levantar era o insuportável conforto da vergonha – o contrário, portanto, do aconchego da mão amiga.
Jake la Motta, pugilista profissional e touro enraivecido por vocação, na encarnação de Robert de Niro em Raging Bull, é a hipérbole do que foi dito anteriormente. Múltiplas camadas de solidão de um homem fatalmente perdido, e fatalmente perdido por fatalmente se recusar a sair de si próprio. Presume-se que o Jake real, um dos maiores pesos-médios da história do boxe, e o único dos grandes que assumiu ter vendido um combate, é no mínimo um eco sincero do primeiro.
Martin Scorsese não era propriamente um novato quando, impelido por Robert de Niro, se decidiu por Raging Bull, ou de outro modo pela personagem Jake la Motta. Os movie brats aguardavam agitadamente a desintegração do sistema que tinham ajudado a revitalizar, e Scorsese também fazia a sua parte. Imaginou um filme com aura de definitivo, o que Taxi Driver à sua maneira já era. Conseguiu um pouco mais, um filme sem tempo definido por ser pertença de todo o tempo. O preto e branco fortemente contrastado reforça essa extrapolação, que mais não é que a entrega última ao objectivo. Datas surgem com frequência no ecrã e perguntamo-nos para que servem, o que significam. O sistema sobreviveria facilmente a Raging Bull (a queda principiaria nesse ano de 1980 com Heaven’s Gate, de Cimino, e a falência da United Artists, e culminaria dois anos depois com One From the Heart, de Copolla, e a falência do próprio), privando-o naturalmente dos merecidíssimos Óscares de Melhor Filme e Melhor Realizador – restariam os inevitáveis: o de Melhor Actor para De Niro e Melhor Montagem para a mítica Thelma Schoonmaker. Sobrou uma lista interminável de elogios.
Jake, na primeira vez que nos aparece, vemo-lo desfigurado e envelhecido, o percurso será o da inexorabilidade do tempo dentro da indefinição do espaço-tempo. Um pouco atrás foi dito algo de semelhante. A entropia registada no rosto. Os quinze minutos seguintes são como que um manual de instruções (também de cinema): uma derrota que é uma vitória, um casamento que é uma profunda separação, um encontro inevitável com a História que é a divergência com o respectivo meio-físico e, finalmente, a consciência de uma super-condição que é o total desfasamento de alguém consigo próprio (com o próprio corpo) e com tudo o que o rodeia, “Sou melhor que todos eles e nunca vou ter a possibilidade de os defrontar. Nunca poderei combater com o Joe Louis.” - Tenho a mãos pequenas, diz; responde o irmão: e então (?), para quê pensar nisso, tu és peso-médio, Louis peso-pesado… Universos diferentes não se encontram; o que para o irmão é um facto incontrolável, e por isso um óbvio não-motivo de perturbabilidade, para Jake representa o caos da incompreensão, caos primordial.
Todo o restante do filme é uma sustentação desses primeiros quinze minutos. Apenas (um meramente que é tudo) uma viagem entre os buracos de verme dimensionais que consolidam o ponto de vista. O som e a montagem são o veículo natural (porque cinema) dessa vertigem.
Aos nossos olhos arrebatados, por exemplo, os momentos mostrados dentro do ringue existem, arriscamos concluir, unicamente ao nível da mente deturpada de Jake. Como uma viagem através do seu desejo perdido (o de nunca poder combater pesos-pesados - há um desconforto que vem do exterior, o som continuamente arrastado, e uma sensação de desproporção, esta do interior, sempre que vemos Jake no contexto do ringue) ou da sua necessidade de superação (o martelo da autopunição, o punho de Sugar Ray Robinson, como a confirmação da sua excepção, “Never got me down, Ray!”, mesmo se antes, em posição crística, foi desfeito numa amálgama irreal de sangue).
No final, o mesmo Jake desfigurado e gasto pelo tempo, já não fala pela sua voz mas pela de um outro, nada menos que o grande perdedor mítico da história do cinema, o Terry Malloy de On the Waterfront, ou seja, Marlon Brando. Tornando-se Jake explicitamente no motivo de busca do cinema americano, a procura por esse estranho herói, vencível de acordo com os cânones da história contada, mas invencível no campo que realmente conta, o da suprema individualidade que é a suprema integridade. Estado onde a loucura se confunde com o ideário, onde a sobrevivência do arquétipo perante a eventual ou eventuais contradições somente é possível por assentar no sacrifício / na perda voluntária.
Nesse sentido, os movie brats são os últimos grandes cineastas americanos, e Raging Bull faz a parte que lhe compete quanto ao desígnio da New Hollywood: conceber o último filme clássico americano.
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