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O nome é absolutamente excepcional: Hubert Cornfield. Arriscamos dizer único. A fazer lembrar uma personagem de Nabokov, todavia um pouco mais para lá de. O que não quer dizer nada, mas ajuda a elevar o olhar sobre uma estranheza: nem pelo nome? Sim, é possível construir uma cinefilia de décadas sem nunca ter ouvido falar desse cineasta. Nem pelo nome, portanto. E apesar de tudo dirigiu nomes como Sidney Poitier, Bobby Darin, Edmond O’Brien, Richard Boone e, abram alas, Marlon Brando, então a viver os dois melhores anos (em rigor os únicos aproveitáveis) da sua década maldita.

Filmes foram poucos e o que dele se dizia e diz não é menos misterioso – Por exemplo, no guia do ano 2001 da Time Out, na recensão crítica a The Night of the Following Day, pode ler-se o seguinte: “Cornfield é um dos mais enigmáticos cineastas americanos do pós-guerra, na indústria deste tenra-idade, e cujos raros filmes, peculiares e inovadores...” No resto, as referências escasseiam, estranho quase-silêncio até ao desvanecimento. Fala-se um pouco mais de Marlon Brando e da sua participação no filme, o que também era de esperar.

Circunstância a fazer lembrar um outro nome, Michael Wadleigh, que realizou o filme oficial de Woodstock, esteve parado onze anos, então dirigiu um dos mais desnaturais e belos filmes dos anos 80, Wolfen (1981) (também inovador e peculiar e com um actor famoso como protagonista, Albert Finney), e desapareceu para todo o sempre – Parece que se tornou motorista de autocarros numa inóspita cidade do Ohio. Cornfield, se não teve tal destino, teve pelo menos direito a esquecimento semelhante. Nomes que vão aparecendo, à espera de ser descobertos – (verificação necessária com olho sequioso).

* * *

The Night of the Follwing Day é, em teoria, o mais próximo que Cornfield esteve (ou poderia ter estado) de um sucesso. Brando, ainda que em horas baixas, regressara em grande no ano anterior - prodigioso no alegórico Reflections in a Golden Eye e protagonista daquele que haveria de ser o último Chaplin, já sem Chaplin, A Countess from Hong-Kong. Não lhe bastou, Brando ainda era Brando, mas o público (acto de irreparável descortesia) já se tinha esquecido. Vito Corleone não estava assim tão longe, é certo, mas para Cornfield seria de pouco consolo. Bad Timing.

História de um crime falhado – Brando e o seu gang apresentam-se como criminosos profissionais e nós acreditamos, mas não por muito tempo. Levam a jovem filha de um milionário para uma casa de praia longe de tudo e esperam ganhar uma fortuna com o resgate. Parece funcionar na perfeição, mas é apenas aparência (e que nível de aparência!). Um(a) junkie, um psicopata, um desesperado e Brando - no último filme em que apareceu belo, como o deus que sempre foi, num louro extremo que nunca antes tinha sido, e perdido como ele gosta e nós ainda mais. Nada funciona, afinal; tudo corre mal mesmo antes de ter de correr mal. No final percebemos porquê: não passam de uma eventual construção (maquinal?) de uma mente faminta e também ela em dissonância. Espectros - Contornos mal preenchidos (como aliás nos aparecem na brilhante sequência nocturna na praia em que Brando se digladia com o verdadeiro vilão da história / sonho).

O chauffeur (personagem sem nome) de Brando talvez seja, no seu mui contido desânimo interior, o único a vislumbrar ao longo do filme a sua não pertença total àquele universo, e por isso o seu ambíguo sorriso estático no fotograma final é tão estimulante quanto tem a funcionalidade de um murro no estômago. A fazer lembrar um outro sorriso, distante deste dezasseis anos, o de Robert de Niro no final de Once Upon a Time in América, de Sergio Leone. Curiosamente ambos têm a sua dose de incompreensão e vilipêndios.

* * *

Referência final a Willy Kurant, acima de tudo: cinematographer; um também quase-silêncio, que tendo em conta os primeiros cineastas acima mencionados só pode ser de singular homenagem. A já aludida sequência nocturna na praia é obviamente dele. Nem todos têm as homenagens que merecem, dirão, e pelo facto poderíamos pedir desculpa, mas os silêncios têm vantagens: no mais das vezes constrangem, noutras dão espaço para os sorrisos, nas restantes permitem a notável reflexão. O que de melhor se pode oferecer a quem trabalhou com praticamente todos os mestres. Tudo o resto poderia soar a desfaçatez.

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publicado às 10:18

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Proferir algum juízo sobre Charlie Chaplin obriga inevitavelmente começar pelo óbvio, ou seja, por dizer que se trata do mais famoso intérprete da história do cinema, criador da mais reconhecível personagem que o cinema alguma vez teve e - sem grande risco de erro - alguma vez terá: o Vagabundo sem nome (não para os franceses que, levando a Europa atrás, ousaram chamar-lhe Charlot). Mendicante, perseguido (e quase sempre, para nosso deleite, pelo policia tonto de serviço), abusador involuntário e voluntário (como tão bem notou André Bazin, não há pontapés no traseiro mais geniais – e por sua vez suplemento subversor mais íntimo e desejável e seminal - que os do Vagabundo nos primeiros filmes), sonhador, inábil, ingénuo, errante, desafiador, gentil, errático, corsário inconsciente dos tempos, enfim, tanto e o seu contrário. Não é simplesmente possível imaginar o cinema sem aquele preguiçoso adorável, feito para criticar os excessos da plutocracia vigente da única forma necessária: o encolher de ombros no meio do caos. Dito e feito.

Tempo passou, as curtas tornaram-se médias e depois longas e espaçadas, entretanto veio o sonoro (que parecia o início do fim do expressionismo do Vagabundo) e as longas tornaram-se ainda mais espaçadas (o Vagabundo, esse, lá continuava a olhar para e por nós), até que, como uma missão que atinge o momento crucial, chegou Monsieur Verdoux. Filme que aparenta (mesmo anos depois, onde nos encontramos) erigir-se numa ideia de afastamento.

O primeiro embaraço para o espectador, esse espectador sedento de mudança, travestido de ideal, surge logo numa das sequências de abertura. Sequência notável. Uma família na sala de estar. Lê-se, dorme-se, faz-se croché, a campainha toca. A família discute sobre quem deve abrir a porta. O tempo distende, processo inexorável para a entropia. Alguém abre finalmente a porta – O carteiro. Uma carta do banco. Uma irmã a viver em Paris deixou de dar sinal de vida e o dinheiro que possuía desapareceu. Sabemos que casou com um tipo que nunca se deixou ver. Um bandideco oportunista qualquer - fazem-nos saber. Mecânica de atracção. Processo clástico, que no espaço exterior tem estatuto de força e na vida tem a força da genealogia. A expansão inflacionária tem momentos, pequenos episódios, de aproximação e composição, todos sabemos. Nesses momentos, a mecânica celeste confunde-se com a família. Família preocupada com o destino de um dos seus (uma das suas, no caso). Quem é o bandideco, afinal? Alguém tem uma fotografia. Vejamos: Onde é que já vimos este tipo? Quem? Chaplin? O Vagabundo? A expressão, o rosto, o bigodinho. Sabemos bem onde é que já o vimos, mesmo que não o reconheçamos, ou não queiramos reconhecer.

Anteriormente, logo após o genérico, apresentou-se a personagem em voz-off, do além-túmulo – Túmulo que, de resto, se encontrava à nossa frente: Henry Verdoux. A voz do próprio elucida-nos. Assassino de mulheres, levado para tão equivocado destino pelas mais demolidoras circunstâncias económicas. Vai ser contada a sua história.

Mas Verdoux, na primeira vez que o vemos, excluída a fotografia, sorri enquanto as cinzas da esposa (que instantes antes fora irmã) se dissipam em fumo no jardim. Arranja rosas e salva um bichinho de uma provável pisadela mortal. Que fazer com aquele ar de gozo? O filme não começou há mais de sete / oito minutos … Não arruinámos absolutamente nada ao espectador.

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O anseio implícito de todos os loucos é sofrer de múltipla personalidade, seja para escapar, seja para melhor viver a sedução da loucura. E os loucos, quem sabe se os únicos, a compreender esse desejo são os loucos endinheirados e criativos: vulgo cineastas. Chaplin, louco de entre os loucos (aqui cabe, por exemplo, Woody Allen) de entre os loucos, singular, primordial, sabe mais, sabe que tal apetite lhe está vedado, que falharia caso tentasse (preso na figura, numa estrita independência criativa, preso ainda pela circunstância da nossa expectativa que o obrigaria sempre a voltar a si próprio), e joga com isso mesmo. É a chave do filme, descoberta em tempo útil por André Bazin, e com a qual concordamos em absoluto. Que permite a Chaplin chegar onde quer, acto de insuperável crueldade, acto de rebelião como não houve outro, postura que a América jamais lhe poderia perdoar (relembre-se que tendo lá vivido durante 30 anos, nunca requereu a cidadania americana).

A voz a quem é devido – André Bazin: ”Resumamos os traços num único: o Vagabundo é na essência um inadaptado social; Verdoux, um superadaptado. Com a inversão da personagem, é todo o universo chapliniano que se vê ao mesmo tempo invertido. Os polícias, que perseguiam e aterrorizavam o Vagabundo, são facilmente enganados por Verdoux. Quando este é apanhado, podendo momentos antes escapar facilmente, decide entregar-se, como se o teatro já tivesse durado o suficiente, e é o polícia que reage aterrorizado … o Vagabundo persiste com se estivesse superimpresso em Verdoux: isso porque Verdoux é o Vagabundo.

Na sequência do tempo e dos filmes, sabemos que o Vagabundo, por mais atormentado que fosse, tinha como objectivo manter-se em fuga. A evasão era o arranjo em que se fundava a sua existência. Era olhado de soslaio, perseguido, acossado, por vezes sovado, e no final fugia para que pudesse noutro dia voltar a fugir. De novo Bazin: “Era uma vítima fácil que sempre escapava no último momento, mas que sabia permanecer no papel de culpado.

Qual é então o golpe mágico de Chaplin com Verdoux? É que Verdoux, ainda que personagem, personagem-Chaplin-Vagabundo entenda-se, faz o que lhe está vedado: breaks character! Deixa cair a máscara que, como se não bastasse, nunca teve posta, nós é que a quisemos ver onde ela não estava. Ou então fingimos ver, o que vai dar ao mesmo.

Verdoux, entretanto preso e condenado à guilhotina, “é o Vagabundo”, conclui Bazin, “a caminho do martírio”. “Sem o Vagabundo, desaparecido para sempre sob a lâmina da guilhotina, não há mais culpado.” E uma sociedade sem culpado é uma sociedade que não tem por onde escapar. No plano final, à nossa vista, nas costas do Vagabundo-Chaplin-Verdoux a caminhar lentamente para o cadafalso, a vingança, no cristalino e mundano estilo do Vagabundo, isto é, Chaplin de dedo médio espetado para quem nesse tão pouco honroso banquinho se queira sentar. A gag do filme por Bazin: “Verdoux era ele! Eles vão guilhotinar o Vagabundo! Os idiotas não o reconheceram!

Já antes, na cela onde aguardava sorridente o seu destino, nos havia brindado com algumas rejeições imperdoáveis: como a de Deus na forma desprendida como recebe o Padre; a da sua pureza quando, depois de uma primeira recusa, aceita o copo de rum; ou a de uma moral firme para a história, quando diz ao jornalista, previamente instado para tal, ‘não estou a ver como é que alguém pode ser um exemplo nestes tempos criminosos – um homicídio faz um assassino; milhões, um herói. Os números santificam!’.

O assassino sorridente dos tempos difíceis (mas não para ele, bem vestido e bem nutrido) atira contra si próprio e acerta-nos em cheio. No fundo, o que Chaplin, desta ou daquela forma, andou sempre a fazer.            

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