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Anteontem de manhã (long, long ago!), caso pensasse sobre o assunto que segue, começaria por pensar assim: Por muito que o ambicione está-me vedado compreender o espirito de tempos que não vivi, o zeitgeist por preguiça (ou outra) atribuído a Hegel. Sem o vivido, e sem a memória desse vivido, resta a arte, que, petulante, aspira a tudo e todavia é apenas reflexo. Pomo-nos de frente e recebemos quantidades de luz. Por via dessas ondas que são partículas e vice-versa, a mais enigmática das propriedades elementares (!?), que se afirme Sim!, concebemos mundos e julgamos compreendê-los; daí, dois juízos que não se excluem: são mundos válidos e são mundos representados. Por outro lado, não são os mundos representados. Uma reprodução apenas pode no limite ser fiel (se for essa a determinação, pois a infidelidade não invalida a arte, e muito menos a inverdade) – (por isso, e por alguma razão não o consigo evitar, não faz falta e parece essencial, coisa tonta, noto o seguinte: para se libertarem das amarras do método científico e de modo a evitar embaraços desnecessários a um espectáculo que se pretende ilimitado, os americanos pegaram num conceito de Coleridge, o de acreditar somente a partir de certo ponto, the suspension of disbelief, e tornaram-no na pedra filosofal do seu cinema de massas). Pronto, exprimi, disseminei: alívio, logo consequente - de volta à condição lacunar, que reitero, e estimo: Por outro lado, não são os mundos representados. Uma reprodução apenas pode no limite ser fiel.
Curiosamente, tal lacuna, transformada em propriedade se assim se quiser, parece (a crer em breves experiências narradas por bons e penetrantes e pungentes contadores de histórias e num ou noutro instante puramente intuitivo) ter direito à sua própria suspensão quando o olhar se focaliza na parte de trás de um mundo, na excepção, na quebra do espírito, na inflexão, na contracultura.
Foi o que me aconteceu após duas, digamos, manifestações de forças (prestes a ser divulgadas!): a experiência libertou-me da intuição. O que fez com que então tivesse irreflectido nestes termos: Uau!, enquanto tentava recordar a revelação de Alex de Large (Laranja Mecânica, para os mais desfavorecidos) ao ouvir os primeiros acordes do segundo andamento [ou terceiro (ou quarto)] da nona do não menos grande Ludwig Van, que na verdade não recordei mas facilmente recolhi na Net, e tratei, agora trato, como se fosse minha,
“Oh bliss! Bliss and heaven! Oh, it was gorgeousness and gorgeousity made flesh…”
--> Factos-Forças: (Inquietude progressiva): Vi 2 Filmes (F desmedido) que pela porta das traseiras me ofereceram o espirito de um tempo que até ontem apenas sonhava e em que agora em parte também vivi: Gimme Shelter (1970) e The Last Movie (1971).
Após o que - efeito secundário que julgo relacionado com o enjoo típico de viagens extremas (a massa expande-se a velocidades próximas da luz e só com a travagem volta ao lugar) - me senti comprimido a tal ponto (Inquietude regressiva), que apenas me resta o seguinte sobre as obras,
Notas V.I. (Vagamente Inteligíveis) –
- Gimme Shelter (1970), realizado por Albert e David Maysles e Charlotte Zwerin, sobre as últimas semanas da digressão americana de 1969 dos Rolling Stones.
- Duas partes, praticamente toda a segunda dedicada ao concerto gratuito na pista de corridas de Altamont, perto de San Francisco, que concluiu a digressão. Concerto de resultados desastrosos – culminou num assassinato (Meredith Hunter, 18 anos, esfaqueado por um membro dos Hells Angels da Califórnia, transformados em seguranças do evento!?) perto do palco durante a performance dos Stones.
- Jagger entoava a primeira estrofe de Under My Thumb enquanto M. Hunter era assassinado. Essa estrofe: Under my thumb / The girl who once had me down / Under my thumb / The girl who once pushed me around. Sem relação poética, apenas coincidência trágica.
- Escolhido pela Premiere como um dos 25 filmes mais perigosos de todos os tempos.
- Excertos da recensão de Pauline Kael sobre Gimme Shelter:
“O concerto grátis foi concebido e iluminado com o objectivo de ser filmado”…”A violência e o homicídio não foram programados, mas os irmãos Maysles acertaram na lotaria do cinema verité.”…”Se certos episódios são criados para serem filmados, o filme em que se inserem é um documentário, ou encontram-se numa terra incógnita?”
O que, salvo, e só em parte, o último excerto, é caso para algumas perplexidades. Com críticas destas não o admira posto como perigoso.
- Outro excerto (não de P.Kael - ?): “Carácter demoníaco!”
- Seminal. Já vimos algo daquilo em Velvet Goldmine (1998) ou em The Doors (1991), ambos filmes de retorno.
- Há um filme dentro do filme que se confunde com o filme, e passamos uma boa parte do tempo a ver Jagger e Charlie Watts a vê-lo. O que faz de nós, mortais, espectadores ao quadrado e um pouco menos mortais.
- Começa com um sonho inocente, mas transforma-se num rasgão que dá para um interior feio e disforme; um mundo a desagregar-se por imposição de um real que, por ser feio, impede a ficção de Jagger e Cia. Típico e essencial!
- Começa com Watts a dizer “É difícil ver isto” e termina com Jagger a dizer “É mesmo horrível”.
- The Last Movie (1971), de e com Dennis Hopper. A rodagem de um filme, um western, numa vilória do Peru termina e a equipa regressa a Hollywood, todos menos um, Kansas (Hopper), que fica para trás pela necessidade de se perder. Para trás fica também o filme, agora interpretado pelos locais, que por não compreenderem que cinema é ilusão recriam efectivamente os tiroteios e a violência. O Padre da vilória pede então ajuda a Kansas para tentar parar com a crueldade que alastra pelas ruas. Só que essa violência já é parte integrante do real, pelo que o entendimento extra (o cinema é ilusão) de Kansas deixou de poder mudar o que quer que seja. Não se diz em vão que a ilusão é apenas ilusão, como qualquer ateu solícito pode comprovar.
- Filme que nos confunde do princípio ao fim, porquanto a confusão é o seu mote.
- Se Gimme Shelter foi absorvido por um excesso de real, Last Movie vai mais longe, não se decide, na sua convenção não existe real como elemento distinto da ficção, pelo que até o termo convenção é discutível. No entanto, as imagens ‘de cinema’ são dadas por inúmeros planos da mesma acção – tentativa de lançar o efeito Rashomon para aumentar a confusão? Ah, e Kansas é duplo de cinema!
- Câmara lenta à Peckinpah, desse tempo e então uma opção bastante criticada…
- De ambos: Se definiram, foi enquanto espectros de uma morte anunciada.
Como se não bastasse, para amplificar o incomensurável, que outra coisa considerar (?), acumulação de estranhezas demolidora, porventura cansado de tanta luz vinda de tantos lados, adormeci sem querer ao som da Sinfonia Fantástica do Berlioz (por não ter encontrado com facilidade imediata a Nona de Beethoven) enquanto julgava estar sobriamente a reflectir sobre o impacto que os filmes haviam tido em mim, e tive um sonho estranho completamente impreparado para o receber. O único sonho gerado em plena luz-do-dia que recordo. Uma vez lá dentro, sem um antes que funcionasse como ligação, era perseguido por uma galinha sem cabeça; corria por vielas enlameadas entre prédios devolutos e janelas com os vidros partidos. Olhava para trás sem parar de correr e, inevitavelmente, lá vinha a galinha. Mantinha a distância aparentemente sem esforço, corpo a balancear de um lado para o outro como o pêndulo de um relógio virado ao contrário, sendo que também não parecia tentar alcançar-me, como se lhe bastasse não me perder de vista. A perseguição continuou algum tempo nos mesmos moldes, apenas o cenário tinha constantes alterações – a cidade perdia os contornos industriais decadentes e tornava-se apenas numa cidade velha, habitada por velhos, que espreitavam pelas janelas e logo se escondiam. Eu fugia, acima de todos os medos, devido ao que considerei o violento despojamento da imagem (i.e., uma violência que não era sangrenta, pois no espaço onde devia estar a cabeça da galinha havia um nada e não uma ferida). Ainda que a fuga parecesse não ter fim, a certa altura fiquei encurralado num beco e, impossibilitado de correr, limitei-me a cruzar os braços e a aguardar com uma estranha tranquilidade. Pensei se não seria esta calma súbita o que outros definiram como calma de morte, mas nem esse pensamento me abalou. A galinha também parou. Aguardava, tal como eu, sem se aproximar. Um pouco intimidado e expectante não tirava os olhos da galinha. O corpo oval inspirava e expirava com uma naturalidade quase humana – movimento que pensei ter o propósito de me adormecer. Foi quando comecei a notar que o pescoço do animal parecia querer comunicar comigo, apontava para a parede à sua esquerda. Aguentei o que consegui antes de olhar. Estava escrito na parede ”O mundo aproxima-se do fim. Deus, não existindo, de nada pode servir, pelo que sabes o que tens de fazer!“. Frase no limite do compreensível, na fronteira do sentido, que evidentemente tinha por fim dar por concluído o sonho.
Acordei e convenci-me serem os filmes os responsáveis pelo sonho. Convenci-me também, como se tivessem alma própria e não fossem mera criação, que o faziam por uma razão mística, a qual tinha agora que descobrir como se de uma missão primordial se tratasse.
Não fui e não espero ser bem-sucedido nos próximos tempos.
Texto (não suporto a palavra!) anterior, de 03-03, 2014 a.d., mesma foto sem direitos de autor, inebriado e pouco calculista sobre Spring Breakers, mal dormido, arrebatado por posições inconvenientes (J) devidas ao entre vírgulas prévio, relido após uma mudança de hora que roubou pelo menos uma, volve-se contra a mão que o escreveu (não ao ponto de cuspir no prato onde come e terá de voltar a comer, forma derradeira e galhofeira de masoquismo, mas apenas por estar travestido de trecho de diário, como uma dentada nos calcanhares de tempos a tempos com o propósito de evitar o esquecimento). É, então, assim que a coisa se me mostra pela manhã (esta): Falo (enfim! espirro) sobre um filme e, a páginas tantas, esqueço de me distinguir do seu autor/realizador, não por mal ou por inveja ou por querer enganar o próximo (pela simples razão de que não tenho leitores; e, já agora, se os tivesse? Se os tivesse, corria o risco, mas também calcularia melhor, imerso, quando não afogado, numa espécie de pudor, que não deveria e desejaria ardentemente não ter, e contudo teria – e não há quem escreva (e publique) e não tenha, talvez Burroughs e apenas se). A certo ponto escrevo lambendo os beiços, usufruindo de certas liberdades de que um diário se vale e, belo álibi, se faz valer para quem o escreve, por exemplo: dirigir-me a outro, outros e sabendo-me apenas percebido por mim; ou então: dirigir-me a outro, outros como se estes tivessem a obrigação de seguir conselhos que dou, justificados unicamente em condições minhas.
A certo ponto, é proposta uma ida ao cu, com o disfarce (pouco consistente, reconheça-se) de que é o filme que o manda e não o escriba, mas como o sujeito é indistinto, abandonado às inércias do limbo, logo deve ser o escriba com a escusa do filme, blá, blá, blá… Mas e o filme, também nos manda levar no cu (camuflagem da camuflagem para obter vista plena)? Bom, o filme manda-nos a muitos sítios e fazer muitas coisas. Pior ainda, recorde-se o fim do dito texto, mando-os, eu, levantar e sentar, em movimentos rápidos, convencido da superioridade de uma fina ironia. Declaro: Levantai o rabiosque mais ou menos dorido da cadeira onde se encontram, sentem-se logo noutra e vejam o filme. Ide, ide…
Prego a espectros e pretendo ensinar a ver cinema. Ups! Sou obrigado a pender a cabeça em negação. A ouvir, dos confins da vergonha, de bocas que não reconheço em rostos escondidos: Claro, claro, e olha lá uma coisa, prega a ti próprio, ó meu cabrão! Como!? Não se prendam. Digam de justiça, tudo o que quiserem, falem com vontade, garra, certeza, estamos num espaço por definição coabitável, supremo e, como conceito, milenar, se bem que no fundo instável: no interior partilhável da mente de um ser social liberto das grilhetas da sobrevivência do caçador-recolector (Uau!). Quase excitado com o meu próprio ridículo, com vontade de me masturbar ao espelho. Dez minutos - Volto já! Ok, dez vezes três, aproveitei para comer qualquer coisa. Não durante, calma, após, de mãos bem lavadinhas. Onde é que isto estava? Não importa, mais coisas? … Chega? Ao menos foram ver o filme? (Soap-Laugh)
Pronto, basta; em síntese, não é um pedido de desculpas, está feito e não se pode mudar, se se sentiram obrigados a tornar o dedo no cu sem delicadeza (são os termos do texto, e assim permanecerá!) em realidade, pois bem, problema vosso. E de mim não falo - Se é isso o que os mantém aqui, bye bye. Não vale gozar, sei que não tenho leitores, tenho espelhos e mente fértil, e partilho, ouço, sonho, já vejo pior. Era o objectivo do filme e tornei-o um pouco meu, nada de mais, todos o fazemos.
Afinal não basta! Vontade súbita! Porém, pecatto pecatto, como seria pensado para vós que não existem pela voz do crítico, melhor, como seria, mantido na sua forma e integridade crítica, para vós que não existem pela voz do crítico?
Mais ou menos assim:
Melhor filme de pelo menos dois séculos - um incompleto, outro sonhado? Melhor filme porque com o desígnio de chocar? Porque nascido para nausear e afastar um certo grupo, hoje sem nome (por incluir tantos e todos os nomes), mas com projecto, acantonado em valores, não há como fugir, conservadores? Não há resposta salutar. Se chateia, por que não considerar, apenas, que cumpriu o seu objectivo. E que,
reduzindo à visão deste crítico, até era exactamente esse, aliás, com tal convicção, a raiar uma certa inocência só permitida em filmes assim, ao ponto de implicar a exclusão de qualquer outro! Um manguito, a língua de fora, um dedo médio espetado ou um dedo no cu apenas são distintos pelo local, idade, educação ou meios postos à disposição do emissor, em rigor, da governança clínica do eu enquanto cidadão na totalidade das disposições: produtor, reprodutor, compilador, terapeuta e doente “de morte” / tédio. No pressuposto de que cada um faz o que pode e sabe, Korinne opta de consciência leve pelo dedo no cu, intercalando com o dedo médio para abrir caminho. Um cu que o espectador favorável não vê como seu por recusa -> aquele que se consegue enganar a esse ponto; um cu que ou é feminino (espectador ideal – idealizado masculino!) ou é desproporcionado e colectivo (todos, incluindo o espectador ideal!).
É como se enunciasse algo deste género: No centro de v. exas. com o mínimo de delicadeza possível! E até ponho a minha mulher no meio para mostrar a quanto vou… (na foto, é a segunda a contar da esquerda).
E com este tipo de discurso diz-se sobre um filme o que é digno do dito - Da forma que tal objecto merece ser olhado? Não e sim, sendo que o não é clássico e o sim é íntimo, exponencial, bonificado, e por isso clarividente (com a ressalva lubrificante, e já mencionada, de um tal discurso apenas funcionar para *filmes assim* [e eis finalmente uma auto-citação, desejo antigo]).
Por consideração, é de aludir à montagem instável, ao conceito de pós (ironia, continuidade, etc.) tal como definido por Steven Shaviro (ler palestra respectiva disponível online). E dizer que é um filme que ousa, no seu âmago, caminhando de indecisão em indecisão, (e neste ponto utilizar o fundamento *filmes assim*: uma gargalhada, seguida de um silêncio unido a um olhar de puro desprezo!) andar ligeiramente à frente de si próprio.
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