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A confirmação do pensamento anterior.
Por alguma razão, sempre que oiço os The Kills penso:
'Eis alguém que vai direito ao assunto.'
Imagine-se um cenário ventoso, necessariamente virado para o mar aberto, no que um promontório tem de mágico e contemplativo. De outro modo, ventoso, sim, mas não ao ponto de se tornar desagradável. As linhas da paisagem movem-se muito levemente, verdes que pendem sobre verdes e não voltam para trás, areias que captam sombras e as alongam no limite da perceção. Não os cabelos de um negro espelhado, firmados na eficácia da brilhantina. Pertencem a três homens. Vimo-los chegar. Ocupam três cadeiras de pedra insertas no solo, dispostos de frente uns para os outros. Uma mesa, também de pedra, no meio. Um deles, o mais novo ainda que não pareça, está de costas para o mar. Os outros, caso o pretendam, podem facilmente contemplar o horizonte anilado. Em momento algum falam, e quando olham (os olhos pestanejam longamente e de forma não natural) é difícil estabelecer um porquê a tais olhares. Dura uma tarde inteira. Quando se levantam e vão embora, é porque atingiram um nível de entendimento perfeito. Vão começar a fazer filmes juntos.
Claro que não foi assim que aconteceu, mas permitamo-nos sonhar, em irreprovável estado de privilégio. Poucas vezes, se é que alguma vez, a reunião de indivíduos deu tanto ao cinema e nos tornou, por isso, tão devedores. Não esquecer: estado de privilégio.
Esses homens: Hiroshi Teshigahara, indistintamente cineasta; Kobo Abe, escritor e Toru Takemitsu, músico. Os três separados sucessivamente por três anos e provenientes de origens diversas. Teshigahara, o do meio, de boas famílias, filho de um dos mestres patronos da arte japonesa e fundador de uma escola mítica, a Sogetsu (verdadeiro império, para cuja gestão Hiroshi haveria de ser arrastado, abandonando por essa razão o cinema ainda nas proximidades do cume). Abe e Takemitsu, mais velho e mais novo respectivamente, partilharam pelo menos uma circunstância, ambos cresceram na Manchúria, então sob ocupação japonesa. Vindos de mundos notavelmente diferentes – alguém escreveu que os campos a perder de vista da Manchúria eram mais propícios ao surgir de homens livres, fora da rigidez da sociedade japonesa –, souberam ajustar até à perfeita coesão. Se não por essa por outra razão, se olhados como corpo, ideia recolhida de um texto cujo autor nos escapa, Abe seria a cabeça e Teshigahara, as pernas e os olhos. Acrescentamos que nesse caso Takemitsu, com os seus acordes perfurantes e repentinos, facilmente conectáveis a perturbações, inclinação para estados de espírito nervosos e outras inquietudes que degenerem em incómodo digestivo, seria o…estômago.
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Os filmes que acabaram por fazer juntos, quatro e todos baseados em romances de Abe, são dificilmente resumíveis e ainda mais árduo (mesmo se desnecessário) é encontrar-lhes um género. The Face of Another, o terceiro dos quatro, e o seu maior insucesso crítico, é para o reconhecimento da obra deste trio fundamental, pois pode (deve) ser visto não só como epítome de todo o modelo, mas como o momento em que o sonharam mais alto. Isto na simbologia e pelo mecanismo de acesso.
A história de The Face of Another, sobre um homem, Okuyama, que perde a cara num acidente de trabalho e recebe de um médico, qual cientista louco, imagem não típica do Dr. Ciclope, em troca uma máscara (perfeita simulação de rosto). Máscara que ganha vida própria e, em vez de se ajustar ao ser, antes ajusta o ser, é representativa da escrita de Abe e logo do cinema de Teshigahara. Temas como a perda da identidade, o lugar do homem no Cosmos, espaços de existência ambíguos e a natureza da liberdade são constantes. Mas essa é apenas a porta que, entretanto, se abre. É quando entra o mecanismo que a boca se abre de espanto. Extravagância, ousadia, liberdade absoluta, não a restrições estéticas, o trilhar de todos os caminhos possíveis de todas as formas possíveis. Centre-se o olhar em Face of Another e deparamo-nos com múltiplos géneros: policial, ficção-científica, drama conjugal, crítica social, terror psicológico. Um plot e um sub-plot lateral ao tema principal e não objectivamente ligado. Depois, sob risco de pecar por defeito, vemo-los usar as seguintes possibilidades cinemáticas: Zoom-outs rápidos e lentos (estes últimos anos antes Kubrick), focagem elaborada e profundidade de campo, sequências em reverso, imagens em espelho, planos a simularem ecrãs divididos, freeze-frames, close-ups impessoais, wash-aways e dissolves, zooms rápidos, montagem alternada, planos documentais, planos-sequência descontinuados, imagens polarizadas, cortes rápidos e entradas súbitas, montagem fotográfica à la Chris Marker (La Jetée), iluminação artificial/teatral, enquadramentos nos cantos e planos giratórios.
Some-se a quase tudo (relembrar: estado de privilégio) uma outra perturbação, a forte ligação à cultura ocidental. Os 60’s japoneses, como todos os 60’s que se prezem, mesmo no Japão, também olharam para fora. Pela voz dos próprios descobrimos o que já antevíramos, a literatura de Kafka e Joyce, a perda de noção do lugar ou do ser, a aplicação possível do stream of consciousness; a pintura de Dali e Bacon (duas sequências são em absoluto evidentes); o cinema de Resnais e Bergman; a arte de Marcel Duchamp. Japoneses de ideário transgressor são conhecidos vários, de Oshima a Wakamatsu, juntemos-lhes estes pelas mais equívocas e, por essa razão, fruitivas razões.
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Mas pode a primazia pela quantidade funcionar dentro de um modelo que apesar de tudo necessita de coordenadas mínimas de precisão? Pode, e Face of Another, mais do que a prova é manual de instruções. Zizek diz sobre o cinema de David Lynch que trata do “sublime ridículo”, sendo que este tem como fim ser levado “muito a sério”. Tomadas as devidas liberdades, não estaremos perante outro ‘sublime’ para ser levado muito a sério, o sublime desequilíbrio? O desequilíbrio das personagens exposto pelos excessos do mecanismo? Desequilíbrio que é a dois níveis funcional?
Sobre Face of Another, já se introduziu levemente a narrativa. A Máscara (também conceito que passa de filme para filme, e a partir de agora em maiúscula) que domina o ser, mas, entre outras coisas, também fracassa. Outra cara, outro ser, mundo aberto de possibilidades, neste caso reduzidas a nada. Para além de perder o lugar, já antes perdera a mulher e tudo fizera para se tornar invisível no trabalho. Perante o novo mundo, limita-se a desejar a mesma mulher, a que já tivera com a cara anterior, a que já perdera com a cara anterior. As múltiplas possibilidades existem, afinal, na mente imaginativa do espectador.
Num certo tipo de cinema até poderia acabar mal, mas apenas depois de uma ou várias estupendas inflexões, porém aqui estamos perante algo por natureza extremo, o desfasamento total perante o Cosmos. Ou mesmo, como alguém disse, perante a História – Vejamos o sub-plot, clara reminiscência das explosões atómicas, estranho e misterioso, introduzido no filme através de uma ampliação de imagem, onde Teshigahara abandona o seu tão amado 1:33:1 aspect ratio (full frame) para um rosto de mulher em widescreen, rosto de mulher também em parte Máscara (a metade bela), e mulher igualmente desfasada do corpo, do espírito, do lugar e do tempo.
A certo ponto, na narrativa principal, aparece uma imagem surrealista de cabelos de mulher na porta aberta do laboratório médico, que liga aos cabelos da mulher do sub-plot e lhe escondem a terrível marca no rosto. Num mundo de Máscaras, ouvimos muito antes da boca do médico (de quem mais?), a solidão seria a constante como estado. No entanto, claro, na visão do demiurgo, também mundo de todas as hipóteses.
A Máscara, ainda a Máscara, que para nós espectadores, que nunca vimos o rosto antes do acidente, bem pode ser a verdadeira cara de Okuyama - abrindo a hipótese da narrativa circular.
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De Pedro o Louco, de Godard, muito se escreveu que era um filme sobre tudo. Face of Another tem pretensão idêntica. Coloca uma questão existencial primária: quem sou eu agora que não me reconheço no espelho (?); e de tal modo que o tudo - a perplexidade, o mistério -, responde pela via da estrutura formal feita instrumento (e em cinema a possibilidade da forma advém da pré-existência de um mecanismo: câmara de filmar), apropriando-se, não sem extravagância, de algo que já é seu por definição e contexto. Posicionamento no mínimo singular. Na corda-bamba. Excerto de uma entrevista de Teshigahara: “Para mim, o corpo e a paisagem devem ser tratados como objectos, e de maneira nenhuma como algo estético … A ideia da estética tem de ser abandonada em favor da ideia funcional do objecto, para poder atingir uma certa realidade.” Fazer da sequência de imagens objecto e não meio, encher as sequências de técnica e assim desapossá-las do que têm de imagem? O que é belo já não é então a imagem, mas o objecto para lá da imagem; e porque objecto, mais próximo do real?
A deslocação da imagem para lá de si própria. A substanciação de um olhar, digamos, totalmente abrangente, como se de uma dimensão superior. Exemplo: suponhamos um universo a duas dimensões, alguém que o pudesse olhar de uma terceira, em profundidade, teria uma vista total, de todos os ângulos praticáveis. Do mesmo modo, imagine-se o que seria um olhar da quarta dimensão (ou quinta, se considerarmos a quarta como o Espaço-Tempo). Visualização imediata impossível. Houve tentativas, claro, pensemos no Christus Hypercubus, de Dali. Tentativa funcional e artisticamente bem-sucedida, mas incompleta, como seria de esperar. Os corpos tridimensionais, a paisagem tridimensional, e depois a cruz quadrimensional perante um olhar tridimensional, ou seja, uma impossibilidade. A melhor forma é talvez imaginar um cubo expandido para a dimensão superior, o tesseract, o hipercubo. Pegue-se num cubo e faça-se crescer um ângulo de 90º em todas as direcções do cubo, de modo a obter como que uma capa encurvada a toda a volta. Abandone-se o olhar a três dimensões, deixou de servir, e imagine-se um outro tipo de olhar, um olhar simultâneo sobre toda a área do cubo. Como o olhar perante a própria sombra, descendo uma dimensão, observação de toda a área a duas dimensões.
Teshigahara, com os bombardeamentos de técnica sobre a imagem, pretende criar um ‘objecto’ (metafórico-simbólico - estamos no campo da arte) olhado de duas formas simultâneas e totalmente abrangentes, olhar exterior e interior, o que o objecto parece e o que o objecto é. A composição do todo.
A conjugação entre os dois olhares é, por outro lado, a impossibilidade da personagem (mesmo objecto, ou porque objecto), presa naquele / nosso universo, em subir de dimensão. A personagem vive o problema, que o Criador expõe, mas não vive – está acima, pode sonhar tão alto quanto queira dentro das regras do seu universo. C=c – Criador igual a cineasta.
Convenhamos que não é todos os dias que vemos alguém brincar com o absoluto e safar-se. Eis o que nos enche de gozo, sabendo desde logo que não há maior gozo.
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Há toda uma sociedade profundamente preocupada com as últimas imagens de Jack Nicholson na varanda.
Imagine-se um tipo de 85 anos acabado de acordar. Depois espreguiça-se e decide ir apanhar um pouco de ar. Ouve-se o chilrear de pássaros. Sentado, gesticulante, olha em volta. Em seguida, enfim, não tão em seguida, desconfiando de uma elipse pouco subtil, para não dizer tosca, levanta-se e observa um helicóptero que passa. Até que, ao que parece, volta a sentar-se. Isso já não vimos. Alguém decidiu que era mais do que suficiente.
Ah - velhote intemporal!
THE END
Prof. Victor Bergman
Uns quantos e lambuzados porquês, projetados em múltiplas direções e logo devolvidos entre obstinações e suspiros. Ligeira pausa. Espaço: 1999, digo uma e outra vez, mudando ligeiramente o tom, e depois sorrio - como uma pista, cujo significado está apenas ao alcance de alguns privilegiados, que se solta e esvoaça.
Espaço: 1999 (!) Continuo a sorrir - a exclamação como cunho pessoal, uma vaga sensação de poder, servida trocista numa espécie de bandeja de bits.
Espaço: 1999. Dois, por assim dizer, agora na mais profunda agitação, trilhos paralelos a operarem dentro da mesma Moonbase: Alpha. Duas temporadas separadas por algo mais que matéria escura. Sempre que a Espaço e dois pontos se seguir 1999 a proposta é singular e unívoca: a primeira temporada. A memória resiste, como o sabor das nêsperas roubadas do pomar da vizinha antipática ou o japonês arrastado e iconólatra de Conan, o Rapaz do Futuro, e a profunda desilusão também, para mal dos nossos pecados. Logo, e quanto a este minúsculo pormenor a partir daqui o silêncio, Espaço: 1999 começa e acaba na primeira temporada.
Preâmbulo:
A 13 de Setembro de 1999, na sequência de um acontecimento nuclear catastrófico (e amplificado à potência S dos sonhos-loucos), a Lua é expelida da órbita terrestre e destinada a vaguear pelo Universo, qual nave espacial à deriva, com 311 habitantes a bordo, vagabundos espaciais na tal Moonbase.
Viagem solitária, expiatória, exploratória, retórica, dialética, errante, harmónica, dissonante, ilógica e divina. Antecipo, e não devo.
De entre esses 311, Victor Bergman, PhD, nascido a 27 de junho de 1940 em região incerta, vencedor de Prémio Nobel em categoria igualmente incerta, braço direito e lóbulo frontal do novo, e ao mesmo tempo eterno, Comandante da base lunar devaneante, John Koenig. Uma primeira passagem do bom professor pela base terá redundado em fracasso, culpas no cartório mais ou menos justas, enfim, um passado pouco esclarecido e só vagamente abonatório (PhD e Nobel vs. desastre nebuloso com um nome e um ano: Ultra Probe Mission, 1996). John Koenig, 17 anos mais novo, e também ele implicado no fiasco da UPM, não teve um percurso menos sinuoso: por exemplo, nos seus tempos de piloto-astronauta terá sido forçado pelas circunstâncias a tomar uma decisão que implicou a morte de 14 pessoas. Sabe-se que sem culpas no cartório, e auxiliando muitas mais pelo caminho.
Mas quanto a isso, a devida água correu e desapareceu em foz esquecida, o ano que conta é 1999. Glorioso futuro de um certo passado. Dois tipos do porvir com a aura do devir, portanto. Seja como vida, espírito ou metáfora. Uma, algumas ou todas.
Ah, louca e gloriosa existência! – o regresso dos amigos de longa data a Alpha coincide com novo acidente, este ciclópico, de dimensão cósmica, e tais percursos são assim duplamente irónicos e não eximidos de perplexidade: de acidente em acidente até ao delírio total (com o sentido de fim-último na escala de Desastres). E é por esses olhos, tanto dados à grandeza como à tragédia, olhos em parte de criança, que observaremos a viagem. Espreitam o desconhecido, e Koenig (bravo, porém preventivo capitão-da-guarda) questiona: “Victor, o quê?”; Victor sorri brevemente e coloca a mão sob o queixo, “Well John”, então reflete e antecipa: “Black Sun”, “antimatéria”, “ecos”, “magnetismo” …
Recordo um dos porquês devolvidos na noite, suposta armadilha, que advertia para a ineficácia do argumento. Era armadilha, e o autor desse porquê acabara de nela ficar preso. Isso mesmo lhe garanti. Não se tratava de ciência. Tratava-se de: amizade; pureza de espírito; desordem existencial; prazer em descobrir; ou seja, precisamente de libertar a mente das grilhetas da eficácia.
A ciência sempre fora para aquela amizade aventureira cárcere, prisão que gerara erros, erros que geraram acidentes, acidente que finalmente libertara a Lua, bem como a amizade, para a (sonhada) quimera. Sim, ao “O quê?” de Koenig, Victor retorquia “Black Sun!”, para acrescentar sempre um “Quem o pode verdadeiramente saber!?” jovial, respeitoso para com os mestres, deleitado perante o desconhecido, corajoso e cortês para com o distinto. Simples e fora de moda. Franco e constitutivo. Quanto à dúvida que, entretanto, os possa assaltar: mas não era objetivo dos selenitas regressar à Terra? Presumo da réplica óbvia: Queriam Scott, Cook, Livingstone, Ponce de Leon, Magalhães realmente regressar? Logo no segundo episódio, encontram um planeta habitável do tipo-Terra, e, da morte, alguém íntimo os avisa para os perigos daquele lar de aspeto tão saudável e familiar. Rejeitam o aviso, descem à superfície do planeta e deparam-se com um mundo de antimatéria, um negativo de rosto idêntico e com propósito sinistro. Essa viagem, adequadamente, ostensivamente, não tem regresso nem desejo de regresso.
Tár, o terceiro filme dirigido por Todd Field em escassos 22 anos -
Diria que uma questão obrigatória, quando postos perante um filme, incide na sua colocação: ou fora do universo ou fixo no seu centro ou outra, intermédia, dentro do vastíssimo campo das possibilidades.
Se falamos de posições extremas, as duas primeiras, problemas surgem de imediato: ou se perde o ponto focal ou se afirma e ampara exclusivamente na sua especificidade (talvez circunstância seja uma melhor palavra), nessa ordem. Perde-se, portanto, a hipótese do ambíguo, da quebra, e também do ecuménico, onde a arte pode respirar em relativa paz perante o abismo.
Tár é o filme que contém todas as qualidades, logo é astuto, e por isso faz o que deve: muda de posição, adequando e adequando-se. Por exemplo, raramente se aproxima da forma e do resultado dos sonhos da personagem central, que, diga-se, consome praticamente todos os recursos do filme, filmados sempre à distância e quase sempre através de representações difusas. Por outro lado, quanto à expressão da monomania (loucura parece excessivo; histeria, deslocado), elemento significativo na construção da personagem, centra-se quase sempre no detalhe – e assim mantém essas 'componentes' no seu devido lugar, no inóspito da mente perturbada.
Depois, em momentos cruciais, não perde o contacto com o que o espectador toma por garantido - diversas impregnações do real (o entrevistador no início é mesmo um jornalista da New Yorker, o cenário é mesmo o da filarmónica de Berlim, a figura tutelar de Bernstein, e no final acabamos por reconhecer com certo horror que se trata da banda-sonora de Monster Hunter), o que lhe confere, não verdade, mas, imagine-se, cola dramática, o seu pungente simulacro.
Manipula ao mesmo tempo com rigor e um brilho nos olhos, que se transfere para nós, os que olham com atenção, embevecidos. Versa sobre assuntos do dia-a-dia, contudo é na singularidade da personagem que concentra a maior força, a que nos agarra pelos colarinhos. É belo porque imensamente bem filmado, e também porque nos conta coisas tanto quanto conta connosco; dentro da sua convenção, quer dizer, apresentando modelos sem antes ou durante expor regras que permitam decifrar, isto é, confiando nessa sumidade abstrata que é o espectador ideal.
Tár é um filme mágico, perturbador e uma obra-prima absoluta.
Num mundo que parece dividido entre moralistas e acagaçados, não admira que um filme como Babylon esteja a ser tão maltratado. Em tempos, alguém perguntou se queriam novela, hoje já não a suportamos. Pois se é para isso, então, apareça o que aparecer, que venha com tudo acoplado. Antes assim.
Pelo menos, as personagens são como sonhamos (e também nos dizem os livros, já agora) as verdadeiras personagens. São assim e assado conforme as circunstâncias, agridem, excedem-se, vivem, nem sempre sabem o que fazer, mas fazem sempre, e a maior parte das vezes o que lhes vai na alma.
Pelo menos, não tem medo da duração. Dura tão somente o que tem de durar. Por outras palavras, dura 190 minutos e não dura assim tanto…
Pelo menos, e na ausência de respostas, fica a perplexidade. Mas também fica o olhar marejado de lágrimas, porque há uma memória que perdura.
E, ainda, porque: se um filme é uma obra de arte em potência, e se fabrica imagens em movimento, então é a hipótese múltipla de uma linguagem que verte para sentidos disponíveis, numa conjugação de modos que criam modelos, porventura, irrepetíveis. O olho como porta de entrada, o cérebro que, após a sequência final, permite escancarar a boca de espanto para a vertigem do abismo.
Sonho acordado com o seguinte princípio:
Qualquer algoritmo colapsa no instante em que a consciência se depara com um fator inesperado.
Ponto de fuga arbitrário na interseção vazia de dois ou mais conjuntos, digamos. Ou: memória vaga cujos contornos são adaptáveis, enquanto ideia ou conjunto de ideias, a circunstâncias imprevistas e não correlacionáveis matematicamente. Aquele ponto em que a seguir a uma canção absolutamente regeneradora (de e por Novos Românticos que agem e se vestem e pintam como tal) aparece um vídeo com os 45 golos que um tal de Rodrigo marcou no Benfica e não conseguimos parar de rir.
Faleceu aos 85 anos o compositor norte-americano Angelo Badalamenti, avança o “The Hollywood Reporter”. Notabilizou-se na composição de música para cinema, destacando-se as colaborações com o cineasta David Lynch, nomeadamente em filmes como “Veludo Azul” e “Um Coração Selvagem” e na série “Twin Peaks”.
in Expresso
Tanto de mim num filme, tanto de mim numa composição que ainda hoje não consigo definir...
E o que é que isso vos importa? O que interessa ao resto do mundo que para mim seja quase tudo?
O que pode (e deve) fazer um agente de poder imenso, vulgo sapiens sapiens, perante a morte, sabendo-a a dias? Apresentar-se ao mundo como uma Blackstar, uma estrela outrora intensa, num momento, e subitamente, tão energética como toda a galáxia a que pertence, e agora minúscula, matéria negra onde as leis da física já não se aplicam, horizonte de acontecimentos de onde a luz já não emana…
Morrer como se viveu, a criar regras próprias, impossibilitando quaisquer classificações, na contemplação ora serena, ora vertiginosa do abismo.
Se músico, então com uma composição inclassificável de 10 minutos, que mistura, para além do óbvio, electro pop, canto gregoriano, jazz e poesia bíblica. É colossal, intervalado por muito breves instantes de calma expetativa - como a vida e a morte deveriam ser?
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